domingo, 6 de maio de 2012

Mãe


Mãe, de pressentir-te o voo no olhar atento
eterno
dos dedos que te beliscam o pescoço
que te “orelham”
a desenharam a elipse oval da ternura
oiço-te em oração
ou será numa canção de embalar
sei que em tudo foste o barco
que partiu ao nosso encontro
não esqueço o teu rosto a pairar na areia
enquanto ancorado no peito o grito
do testemunho lento e aflito
medes de novo a temperatura
que te não dá descanso
no teu gesto manso
sem sintomas
sem queixas
de temperar a pressa e a raiva e a angústia
do momento
de um qualquer banco de hospital
a tua mão que compõe as últimas madeixas
que vira a página da história
e faz de pássaro
na luz de candeeiro
a esvoaçar em todas as sombras
a exorcizar todos os medos
pões água na fervura do tempo
na torneira do banho
aqui estás e ali ficaste
aquém do silêncio do esquecimento
de regresso à gramática doce
à alegria das primeiras palavras
acompanhas as filhas rasa de lágrimas
por dentro
ou de sorrisos por fora
sentada no rectângulo da cama
acolhes a todos
curvada sobre o ângulo recto da justiça
enquanto a borbulha feia cresce
e a ferida infecta
esperas-nos no infinito limite da tua paciência
fazes cinquenta esperas e consultas por ano
e milhares de análises de resultado imprevisível
aqueces mais uma vez a sopa
o leite meio gordo
e tratas o caos que te perturba
por todos os cantos da casa
e da tua fragilidade
compreendes a falta de atenção
de nos ausentarmos quando tanto precisavas
arranjas um último beijo
no fim do dia
do carinho, da compaixão e de coragem
de uma vida
ainda vamos passear pela tua mão
conhecer o mundo
enquanto aconchegas o cobertor.

Lisboa, 6 de Maio de 2012
Carlos Vieira
 



 “Mãe e Filho” de Gustave Klimt

Discussão

 

- Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas,
bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e
dão-se a todos os mesmos direitos.
Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.

Desculpei mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo
mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde, isso sabia eu.
Que mo viessem dizer, era outra coisa.
Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos.
Acho um snobismo.

- Eu sou democrático - rugi entre dentes, como resposta. - Tenho
amigos no exílio, todos democráticos.
Foram para lá por serem democráticos.
É um sacrifício que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor
universitário exilado e democrático.
Eras capaz de fazer isso ?

- Não sou democrático.

Não havia resposta a dar. Nenhuma. Ele não era democrático, não
sabia de democracia.

Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me
afirmaram que lá é que é a democracia.

Recusaram-me o visto no passaporte, disseram
que eu era comunista!
Viram isto ?

Mário Henrique Leiria
Contos do Gin-Tonic

Rodrigo Leão & Cinema Ensemble - Casino Estoril ( A Mãe)

sábado, 5 de maio de 2012

Perdeu-se a vergonha!


Alemanha deixa Hollande “salvar a face”, mas espera que mantenha compromissos - Economia - PUBLICO.PT

Ute Lemper - Pirate Jenny - Live

CIbelle - Green Grass

O crime perfeito (I)

 

no leito entreaberto o lençol era um enorme jarro flor, de onde escorria o marfim que já foi anterior ao gestos de despertar e se prolongava na camisa de dormir que escondia o corpo frágil. uma rosa de sangue parecia levar a luz dos caracóis loiros. pétalas de luz floriam nas frinchas da persiana e acendiam a metade da água que repousava na jarra de vidro sobre a mesa de cabeceira. aí havia muitos comprimidos completamente brancos semeados no caos. um choro ténue de mãe ou de filha surgiu como um riacho debaixo da porta com foz num aposento contíguo. havia aquele intruso no espelho que era eu. que fazia ali a usurpar a cumplicidade doce e morna da madrugada deste quarto? somente aquele cheiro recente de pólvora me era familiar e que apontava para que algures calada, se poderia encontrar a flor fatal, até que no esquadrinhar minucioso do olhar ela ali estava, de prata caída, depois da última primavera de fogo, a pistola tinha adormecido num sono solto,  sob o tapete creme de angorá, planeando outra trair a vida noutro jardim interior.

Lisboa, 5 de Maio de 2012

Carlos Vieira

                                                           
                                                          A Morte de Desdemona - Delacroix