quarta-feira, 25 de abril de 2012

George Orwell

Lilies of the valley

revolução tranquila


                                                                                   “The house was quiet and the world was calm.

                                                                                     The reader became the book; and summer night”

                                                                                      Wallace Stevens







pétala

grito coado de seiva onde se tece

o pensamento da luz e do silêncio

e o primeiro canto livre dos espinhos

de coragem



sílaba

nos lábios de veludo onde renasce

a escola da ternura e o espanto da porta aberta

o azul é apenas o mar à volta das palavras

de viagem



perfume

das manhãs sobre o tronco da liberdade

que desperta e nos abraça desajeitada

e na sua timidez ainda seduz os pássaros

de passagem



lâmina

que te corta as cordas em que corre agora o sangue

dos teus pulsos e se reinventa nessa flor caída

no chão da história onde germinam tranças de sonho

de miragem



lágrima

página de água que se solta do cárcere da carne

véspera de dor que vence a vasta solidão do areal do tempo

e nas conchas das tuas mãos se oferece em sede de perdão

e de paisagem



cópula

onde cada átomo é o testemunho de puro prazer

em cada um se aprende que somos o vento e o céu e a vergonha

e cada gesto mais penetrante do amor que buscamos nos encontra

mais selvagem



pétala ou sílaba

de perfume e lágrima

lâmina da cópula

onde chora

onde cheira

onde sangra

a revolução tranquila



Lisboa, 25 de Abril de 2012

Carlos Vieira


                                         “ Farmer Sitting at the Fireside, Reading” de Van Gogh

sábado, 21 de abril de 2012

Xaile Negro


Subitamente

invadiu a página em branco

o vulto de mulher de xaile negro

e lenço no cabelo

como se caminhasse de costas

para uma manhã de neve

 saiu do nevoeiro

algures no princípio dos anos sessenta

apercebi-me disso

pela tímida amostra de cabelo

que se soltou

uma confidência da memória

e considerando a falta de ritmo dos passos

uma desprezível curvatura do tronco

diria que podia atravessar a meia idade

naquele andar de viúva  frágil

ou de abandono de emigrante

tinha aquele olhar de mulher

que já deixou Deus a falar sozinho

depois era uma mancha

que descia no atalho do papel

vergastada pelo vimieiros

aproximando-se perigosamente do rio

e foi então que lhe vi o rosto

de pálida serenidade

como se a vida já tivesse partido à muito

como se precisasse da corrente

para voltar para junto de si

um espectro que adejava

à beira de outro tempo

e na tinta que corre pela página

fixando apenas o xaile negro

e o lenço mais à frente

dispersos na nudez do corpo frágil

debatiam-se os ossos e a luz

apenas sombras fugazes

à flor da erva

subitamente esbate-se

 e fico de novo sozinho

suspenso sobre o buraco negro

a perscrutar a mão que se estende

a acenar a página em branco

a aguardar o rumor da escrita



Lisboa, 21 de Abril de 2012

Carlos Vieira



                                      “Woman with a mourning shawl” de  Vincent Van Gogh