Subitamente
invadiu a página em branco
o vulto de mulher de xaile negro
e lenço no cabelo
como se caminhasse de costas
para uma manhã de neve
saiu do nevoeiro
algures no princípio dos anos sessenta
apercebi-me disso
pela tímida amostra de cabelo
que se soltou
uma confidência da memória
e considerando a falta de ritmo dos passos
uma desprezível curvatura do tronco
diria que podia atravessar a meia idade
naquele andar de viúva
frágil
ou de abandono de emigrante
tinha aquele olhar de mulher
que já deixou Deus a falar sozinho
depois era uma mancha
que descia no atalho do papel
vergastada pelo vimieiros
aproximando-se perigosamente do rio
e foi então que lhe vi o rosto
de pálida serenidade
como se a vida já tivesse partido à muito
como se precisasse da corrente
para voltar para junto de si
um espectro que adejava
à beira de outro tempo
e na tinta que corre pela página
fixando apenas o xaile negro
e o lenço mais à frente
dispersos na nudez do corpo frágil
debatiam-se os ossos e a luz
apenas sombras fugazes
à flor da erva
subitamente esbate-se
e fico de novo sozinho
suspenso sobre o buraco negro
a perscrutar a mão que se estende
a acenar a página em branco
a aguardar o rumor da escrita
Lisboa, 21 de Abril de 2012
Carlos Vieira
“Woman with
a mourning shawl” de Vincent Van Gogh