sábado, 31 de março de 2012

The Mysterious Models of John William Waterhouse - Part II

Dead can dance - enigma of the absolute

Levon Minassian & Armand Amar - Ar Intch Lav Er

Catarse


Catarse

do teu corpo côncavo

e o vagar

de vício absoluto

na tarde

do olhar  que antecede

o precipício

num vórtice

de proibido fruto

na sede

que te invoca

e desces depois

pela água turva do rio

que te cerca

numa vertigem de pétalas

num sortilégio de aves

que te curva

tu és agora

o animal ferido

antes de ser afoito

e astuto

de sucumbir num grito

e de partir a seta

sem dizer nada

oiço-a no restolho

do teu sexo

e numa prece de arbusto

oiço-a numa pressa

de serpente

de olho por olho

de me deixar ir

na corrente

na catarse  

do dente por dente

devagar tão devagar

surge no ápice da febre

que nos transcende

o beijo que percorre

a constelação

do teu corpo

incrédulo

até sentires

dentro de ti

crescente

o céu e o inferno

o fogo e a luz

num abraço

de estrela cadente

num frémito perfumado

de flor



Lisboa, 31 de Março de 2012

Carlos Vieira
















quinta-feira, 29 de março de 2012

Por terras de ninguém


Interrompam a cidade nesse murmúrio do interior dos prédios e a cor dos semáforos

não sabem  

que o meu pai traz de novo dentro de um cesto de verga o segredo dos pássaros



nas buzinas das almas apressadas soltam-se insultos insanos e alegrias passageiras

não sabem

que no perfume das memórias de infância perpassa a silente solidão de lágrimas ligeiras



os bancos de jardim navegam nesse mar de folhas e de papel e de gente, desgovernados

não sonham

o esplendor de sulcar a terra, prometer colheitas que escondem corpos nus e almas de arados



nas esquinas, escadas, nos passeios e esplanadas estão todos tão perto de nós e tão acossados

não sabem

que ao longe ardem frutos, peixes e flores, de árvores e ribeiras, de veredas e cidades saciados



debaixo dos candeeiros afogados no nevoeiro farrapos de gente enforcam-se nas cordas da luz

não sabem

dos séculos de frio das madrugadas, dos animais e homens abraçados no algodão de contraluz



percorrem-se ruas e ruas e bares e viagens e as precárias promessas de néon dos teus lábios

não sabem

sob a quieta claridade da pedra e o tranquilo caminhar das águas calam-me teus dedos sábios



pela sobranceria perpendicular das praças e misericórdia das fontes e sombras de jardins

não sonham

os segredos de fantasmas, o prazer paralelo da carne incendiada na palha dos sótãos e confins



sei de ti na parede que nos separa e nos olhar de lâmina de persiana que morre no alcatrão

não sonham

o canto e a luz intermitente dos grilos e dos pirilampos do teu corpo solar nas noites de Verão



não sabem, nem sonham

o número de estrelas que caíram do céu dos subúrbios

nem aquelas  que ficaram presas nos sonhos das árvores



não sabem nem sonham

as que andam por aí filhas de pais incógnitos

pobres e frágeis estrelas desterradas.



Lisboa, 28 de Março de 2012

Carlos Vieira


                                                “an immigrant” de  Dragan Secaric’s