quinta-feira, 15 de março de 2012

Histórias pouco convincentes e nada abonatórias


Embrenhei-me
pelas ruas estreitas
e pelos becos esconsos
da cidade
e dei a volta aos largos
de braço dado
mergulhei no submundo
vulgo “bas-fonds”
e fiquei sempre à porta.
- Desculpe o senhor
não pode entrar!
É reservada a admissão.
Eu aqui fico, sem pertencer a lugar algum!

Absorto
apenas eu
e aquele miúdo
de garrote no crepúsculo
e manga subida num olhar de pássaro morto.

Aquela mulher de olho negro
de meias rotas
e braços cruzados
pode estar a rezar
no limiar daquela arcada
confundiu a silhueta de um cliente
com a lua cheia
estranha concorrente.

Todos a olhavam como culpada
não sabiam porém que estaria já a espiar a sua culpa
-Por minha culpa, minha máxima culpa!
Os que nunca erraram atiravam pedras de todos os
lados e os outros também.
Ah! Nós e os outros e eu sem saber de que lado estou!

Havia uns tantos, dos permanentemente bêbedos
anjos bêbedos
porque que tinham sido expulsos de casa
porque não tinha vinho em casa
porque estavam fartos daquele vinho de casa
porque lhe tinham escondido o vinho em casa
os que convivem mal com a liberdade
e tem mau vinho
e não tem asas.

Desamparados na queda
todos pareciam ter sido tocados
alguns via-se nitidamente que já estavam tocados
como se tivessem qualquer coisa de podre algures
mas eram os únicos a quem os néones
descreviam uma auréola
e tinham uma estrela
estavam marcados com uma estrela
de chumbo.

Havia os outros
e quem eram os outros?
sombras inóspitas
os agachadas do dia
animais de sargeta
que vivem na sombra das sobras
e do florescente comércio do lixo
e do lodo
os sobreviventes
os que vendem a alma ao diabo
os que não tem alma
os que disparam com um pau
e os paus mandados.

Havia e há os outros
os que fazem da fraqueza força
os que vendem a fraqueza
os que utilizam a força
os que desconhecem a sua força
os que se servem da força
dos outros
e os que a exploram
a força dos frágeis.

Fui pela noite da cidade
cúmplice da loucura
amigo da loucura
por fim louco
porque que quem anda muito tempo
com um coxo
mais tarde ou mais cedo
pode passar a coxear,
claro que não é agradável
para ninguém
estar louco e coxo.

Declaro-vos loucos
neste miserável mundo
única possibilidade de poder viver
e assim sendo a mais sensata
e declaro-vos curados
pois a vida não se compadece
com estar doente.

Lisboa, 14 de Março de 2012
Carlos Vieira

terça-feira, 13 de março de 2012

III – Memória de Árvores (Oliveiras)


Nuvens de espanto dormindo sobre a fraga

 cabeleiras de aguarela verde

 manchadas de tordos

 de azeitonas

 e de sonhos

 transidos de líquenes

e de musgo

 neles corre o divino óleo

que o homem destilou

 do labirinto do tempo

 onde perdidos andámos

de candeia acesa

que arde no espesso sangue dos avós

e tece o fio de luz

 que iluminará o sabor da noite

 ou a deslumbrante serenidade dos peixe

 no abismo da vida

 e na textura e relento das palavras

que por vezes habitam a minha boca

 invocando a verdade e a paz

 e o fio de azeite

que caminha por cima das águas

levantando nuvens de espanto

 ou quanto muito

 frágeis flores de oliveira

 num silêncio rouco

 que nos cresce na fraga do peito



Lisboa, 13 de Março de 2012

 Carlos Vieira

                                                                 "Olive tree" Melissa Imossi