segunda-feira, 5 de março de 2012
domingo, 4 de março de 2012
Esboço perdido de um sonho
o poema é janela e porta ou ângulo morto de esquina
varanda vespertina e inquieta e solidão habitável
rua deserta na sombra de um homem
rua deserta na sombra de um homem
levantar os muros e os poemas salpicados de sangue
do ricochete dos projécteis e da defesa das ideias
“graffitis” da liberdade e outras incivilidades
fazer betoneiras de versos e de cimento e tijolo a tijolo
poder edificar outro espaço e tempo a tiracolo
na resistência das construções clandestinas
fazer que pairem por instantes interjeições na grua
a morte da metáfora no acidente de trabalho
a encher de ruidoso silêncio os alicerces
ligar uma cirúrgica malha de estrofes e betão armado
depois sobre a laje dançar o incêndio de um tango
à volta do poema pilar e tronco que não cede
desenhar o caminho como quem observa um filho
que começa a atravessar o tráfego da vida
balbuciando a primeira palavra da poesia
depois deixar que fiquem bem secas as sílabas
e abandonar as rimas à solta no poema
inalar e beber as suas tintas
subir a pulso os andaimes e descer nas roldanas dos versos
no instável equilíbrio do sentido
ousar o golpe de asa
abrir a torneira e deixar que se liberte a inspiração
palavra a palavra ir moldando
a abóbada e a cisterna
ajustar a madeira de cofragens e adjectivos graves
de suor e de paciência bem escorados
bem tensa a subtileza do arco
grandes são as superfícies e altos os pés direitos
a poesia será desassombrada
cruzada de correntes de ar
segurar nas pedras rústicas e nas palavras e limpá-las
acariciá-las escolhendo a sua face mais tranquila
na evocação da dor dar-lhe a beleza possível
ficar debruçado no peitoril de cantaria de outros cantos
onde se pode erguer a persiana e o discurso amoroso
onde se esconde o olhar
lanço o texto como quem ergue uma ponte entre margens
e nos esticadores côncavos das figuras de estilo
acendem-se a obra de arte e os candeeiros
neste cálculo da resistência dos materiais aos tremores
de terra e à catástrofe dos sentimentos
de terra e à catástrofe dos sentimentos
o poema deve possuir nervos de aço
depois espalhar pela poesia pela casa pela cidade a terna mobília
das mesas e cadeiras e camas inúteis de gente com fome
por dentro e antes do amor
o poeta elabora as plantas onde sangra e cuida o seu coração
onde distingues a arquitectura dos mundos que constrói
em cada verso o jejum e o sonho de Afonso Domingues
Lisboa, 22 de Março de 2012
Carlos Vieira
“the dictator’s architect” Harold Davies
sábado, 3 de março de 2012
O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós
Eça que é Eça, antes dos exames de DNA, da utópsia pesicológica, dos especialistas em crimes passionais e do IC19...
"Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado à cabeceira da cama um cabelo louro. Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo luminoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos. Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.
A pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadissímo, extraordinariamente puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos, por uma ligação ténue, delicadamente organizada.
O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoísta.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados fantasiosos.
Terá talvez sido educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridionais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura natural.
Isto eram apenas conjecturas, deduções da fantasia, que nem contituem uma verdade científica, nem uma prova judicial.
Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame de um cabelo, e que aparecia doce, simples, distinta, finalmente educada, como poderia ter sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Mas conhecemos nós poventura, a secreta lógica das paixões."
O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós
"Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado à cabeceira da cama um cabelo louro. Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo luminoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos. Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.
A pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadissímo, extraordinariamente puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos, por uma ligação ténue, delicadamente organizada.
O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoísta.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados fantasiosos.
Terá talvez sido educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridionais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura natural.
Isto eram apenas conjecturas, deduções da fantasia, que nem contituem uma verdade científica, nem uma prova judicial.
Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame de um cabelo, e que aparecia doce, simples, distinta, finalmente educada, como poderia ter sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Mas conhecemos nós poventura, a secreta lógica das paixões."
O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós
Estalactite I
O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou de pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milênios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.
Trabalho Poético
Carlos de Oliveira
(1921 - 1981)
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou de pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milênios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.
Trabalho Poético
Carlos de Oliveira
(1921 - 1981)
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