domingo, 29 de janeiro de 2012

Pedro, lembrando Inês

Amo-te; e o teu corpo dobra-se,
no espelho da memória, à luz
frouxa da lâmpada que nos
esconde. Puxo-te para fora
da moldura: e o teu rosto branco
abre um sorriso de água, e
cais sobre mim, como o
tronco suave da noite, para
que te abrace até de madrugada,
quando o sono te fecha os olhos
e o espelho, vazio, me obriga
a olhar-te no reflexo do poema.
Júdice, Nuno, Pedro, lembrando Inês
Publicações D. Quixote,
Colecção Frente e Verso, 2009

sábado, 28 de janeiro de 2012

Carl Orff - Carmina Burana - O Fortuna


Carmina Burana - O Fortuna, Imperatrix Mundi



Em latimEm português
O Fortuna,Ó Sorte,
Velut LunaÉs como a Lua
Statu variabilis,Mutável,
Semper crescisSempre aumentas
Aut decrescis;Ou diminuis;
Vita detestabilisA detestável vida
Nunc obduratOra oprime
Et tunc curatE ora cura
Ludo mentis aciem,Para brincar com a mente;
Egestatem,Miséria,
PotestatemPoder,
Dissolvit ut glaciem.Ela os funde como gelo.
Sors immanisSorte imensa
Et inanis,E vazia,
Rota tu volubilisTu, roda volúvel
Status malus,És má,
Vana salusVã é a felicidade
Semper dissolubilis,Sempre dissolúvel,
ObumbrataNebulosa
Et velataE velada
Michi quoque niteris;Também a mim contagias;
Nunc per ludumAgora por brincadeira
Dorsum nudumO dorso nu
Fero tui sceleris.Entrego à tua perversidade.
Sors salutisA sorte na saúde
Et virtutisE virtude
Michi nunc contrariaAgora me é contrária.
Est affectus
Et defectusE tira
Semper in angaria.Mantendo sempre escravizado
Hac in horaNesta hora
Sine moraSem demora
Corde pulsum tangite;Tange a corda vibrante;
Quod per sortemPorque a sorte
Sternit fortem,Abate o forte,
Mecum omnes plangite!Chorai todos comigo!


 

Diane Schuur - Round Midnight (arranged by Clare Fischer)

Joanna Wang - Vincent

Sonho marítimo de uma árvore anónima

Olho para as árvores
que deixaram de ser mastros
ou rumor de outro mar
e de outra história
em silêncio escutando-as
oiço os homens colossais
prodigiosos
os seus grilhões
e os seus longos braços erguidos
empunhando barcos e pássaros
os seus olhos são punhais.

À flor da pele está içado
um sonho
de um mapa verde
de mudar o mundo
onde revemos outros trilhos
dos novos destemidos
e aqueles que trazem consigo
os nossos filhos
a última palavra
dos remoinhos de afogados
e a primeira de outros calados
no ar que se respira.

Podemos ver
na curva do tempo
o mar a beijar-nos os pés
os que morrem na praia
e os outros das galés
aqueles onde corre
a febre do sangue
a caminho das ondas.

Acesa na areia
fulge a firmeza de uma ideia
de esperança
de queimar o tempo
deste Inverno maior
e de apenas sobrarem
sombras tímidas
de melros
das árvores nuas
segredos e folhas caídas
contra o sol
e a raiz dos medos
distingue-se um jardim
plantado num outro mar
pelas artérias  do mapa verde
floresce um novo mundo
e o sonho de um navio
de mão dada a passear

Lisboa, 27 de Janeiro de 2012
Carlos Vieira

                                                         “fantasies of a naked trees” by  Covert Art

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Preamar - II

                                                         Pintura de autor desconhecido

Preamar
II

Ali estavas no teu intangível vestido de noite, de pérolas e de sal
                                              podia até ouvir-te nesse sonho em que corres descalça no areal
ou se amanhece o teu sorriso de luz etérea e na brisa que te esconde
                                              nessa antiga memória arquejando de espasmos num uníssono de mar
reconheço-te o sabor, o regresso à loucura e ao indefinido perfume
                                              que me derruba, mordo o pó da estrada, fenda aberta no meio do luar
limiar secreto de outro esplendor, de um cardume de peixes e de estrelas  
                                             e alastra de novo em mim, ancestral, o rasto marítimo que deixas ao passar

Lisboa, 26 de Janeiro de 2012
Carlos Vieira