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sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sonho de um cavalo branco

Sonho de um cavalo branco (the horse with no name)

                                                               "O cavalo dá-nos as asas que nos faltam!"

O cavalo branco chegou aquela famosa praça do centro histórico da cidade, sem o cavaleiro fiel e verdadeiro, eram mais ou menos duas da madrugada, ergueu as suas duas patas sobre as pedras da calçada e relinchou como se fosse Bird, a experimentar o seu saxofone, o que é certo é que aquela frequência foi suficiente para ali e acolá fragmentar cristais e vidros da janela.

Luzes foram sucessivamente acendendo-se, como casas de um tabuleiro de xadrês, por força de todo aquele inusitado momento de espanto, daquela incomum força da natureza.

A sua pele e suas crinas reluziam, embora não fosse lua cheia, mais por força das réstias de luz, de um ou outro candeeiro envergonhado, da publicidade dos néons, da que transpirava de uma janela, onde alguns ínsones ou noctívagos ainda viajavam. 

Manteve-se ali com as duas patas no ar, em pose de veemente discurso de Estado, até os residentes da praça acordarem, estava bem tratado, sem vestígio de qualquer arreio ou ferragem de ferreiro, o seu relinchar tinha raízes na alma que reza a história e a ciência os animais não tem, por mais inteligentes que possam ser.

Teria fugido de algum circo que tivesse chegado entretanto à cidade, farto das luzes da ribalta, do chicote de quem o domava, da comida do tratador ou da complacência das crianças, verificava-se no entanto que a sua atitude selvagem e demasiado desafiante, não era compatível com vivências de estábulo. 

As pessoas estremunhadas entretanto assomavam às janelas, do peitoril muitas envergavam os seus pijamas ou roupões, esfregavam os olhos e não queriam acreditar naquela visão que teimava em permanecer, como se fosse um candeeiro de mesa aceso, ali bem no centro da sua vida quotidiana, ali deixando-lhe em pedaços a rotina. 

Na mansarda uma empregada de mesa, de meia idade, que tinha ficado solteira comentava com o seu vizinho octagenário que " - É uma estampa de um animal e se vivesse no rés-do-chão, até podia ficar com ele!". Ao  que o outro replicou "Nunca se meta numa coisa dessas, um cavalo é um animal de muitos humores, tinha que levá-lo a passear e em vetererinário, as contas, um horror!".

Um velho professor de matemática estava deslumbrado perante a pureza daquela equação, quanto ocupava de área, a sombra do cavalo, naquele quadrado perfeito da praça que tinha nome de terceiro rei.

Uma rapariga modelo que há pouco tempo se tinha mudado para aquele 4º andar sem elevador, tinha aparecido com rabo de cavalo, para não destoar e gostava até, de um dia, ver o animal desfilar com ela na passarelle, mas pelo menos devia levar ferraduras e ela sapatos de salto alto de agulha, seria uma parelha que faria de certo as delícias da plateia.

Depois aquelas duas irmãs velhinhas, do cavalo branco, regressaram ao picadeiro, onde tinham tido lições de volteio, a olharem no grande espelho, o trote, o galope, o garbo branco dos seus alazões, esqueceram de quem era o ferro mas certamente de uma famîlia muito distinta do Vale de Santarém. Olharam-se nos olhos e viram aquele cavalo branco a empinar-se dentro de si, de rédea solta e com o freio nos dentes, gostavam destes comportamentos um pouco selvagens, um pouco rebeldes.

Um menino entre os seus progenitores perguntava "De que cor é o cavalo branco de Napoleão?" Os progenitores responderam em uníssono, um " Não sei!" . Estavam realmente preocupados com outras coisas, como é que era possível no século XXI, um cavalo chegar ao centro da cidade e se colocar naqueles despropósitos, a agitar a noite de pessoas que amanhã tem de trabalhar, já para não falar dos estragos.

O cavalo continuava ali na sua pose de pedestal vivo, embora se tivesse deixado de relinchos e concentrasse o seu olhar pestanudo, num caniche do primeiro andar, que parecia protestar, energicamente, aquela interrupção do sono.

A florista da esquina que morava numa cave ao nível da calçada, mulher para os seus cinquenta anos, muitos anos de praça e que dizia não haver nada que não tivesse visto, estava verdadeiramente espantada e dizia "Com mil ramos de cravos ou isto é um milagre, o cavalo de S. Jorge ou um novo 25 de Abril!". E preparou os seus cestos, para ir para a praça porque o evento era promissor neste tempo de crise.

Um intelectual que não fazia nada e vivia de romances intermitentes, comentava com o casal gay, que este cavalo representava muito mais do que um cavalo, era um libelo acusatório contra a normalidade e a sonolenta cidadania, um desespero animal perante a impossibilidade do sonho, um coice pela democracia. O casal assentia e olhava para o cavalo como um herói dos tempos modernos, neste tempo em que faltavam as referências e as estátuas equestres serviam apenas de poleiro, para os pombos com todos os outros inconvenientes.

Um jornalista de um conhecido diário, amaldiçoa-se por não ter ali a máquina fotográfica e na sua cabeça a caixa da primeira página, "O sonho de um cavalo branco", depois remeteria as explicações para as páginas interiores, sem sencionalismos, tentando encontrar explicações plausíveis para o fenómeno, fazer a pesquisa histórica, descrever a beleza íntrinseca do animal, a sua atitude de desafio e a assembleia espontânea e ocasional que se reuniu à sua volta, em hora imprópria, claro que não faltaria uma alusão às consequências sociais e políticas que um acontecimento desta natureza poderia provocar, daí para a frente.

Por fim, o cavalo desapareceu dali como um raio, por uma rua lateral, nem vestígios no solo da calçada, apenas os estilhaços dos vidros das janelas partidas, talvez alguns deles, do vento que se havia feito sentir, nos últimos tempos.

As pessoas aos poucos fecharam ou abandonaram as janelas e intrigadas perguntavam-se, se aquilo que acabaram de ver, era um cavalo verdadeiro ou uma ilusão de óptica, realidade virtual, um sonho colectivo ou mais um quadrúpede que sem nada de relevante para dizer, ocupou o espaço central, conhecedor das estratégias de marketing, pôs os seus pequenos mundos, por breves instantes de pernas para o ar, o que pensando bem, nos tempos que correm, de obstáculo em obstáculo, nem é muito difícil.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

E o Corvo aqui tão perto



Ontem, no meio bruma atlântica, hipóteses de vagas de vinte metros, ventos em que a velocidade que o anemómetro conseguiu medir chegou aos 157 kms/h.
Ontem foi insuportavelmente longo o dia, sobre os 17,13 km2º de superfície. Todos os deuses se puseram de acordo, em não deixar sair ninguém às canadas.
Os homens do isolado Corvo espreitaram para a nesga de mundo que lhe resta, pelos postigos e portas entreabertas.
Nas pequenas quadrículas dos caixilhos sobrevivia o Morro dos Homens, nestas tão fantásticas e verdadeiras terras do fim do mundo.

Lisboa,13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Excerto de Maria Gabriela Llansol


 [...]

Dizia,
a minha obra nasce nas minhas mãos, estou em relação constante com ela. Esvaído o adjectivo possessivo, encontro a simultaneidade; Tejo-rio é simultâneo com os outros rios, delta ou estuário, ou outra forma de boca. Escoar é escrever e ______________
tornou-se pacífico o pomo da discórdia.

[...]
 
    Penso num motim de palavras; no dia em que eu direi: as palavras amotinaram-se, reivindicam a revolta que a língua sujeita ainda não lhes tinha oferecido.

[...]

    Quando estou assim deprimida como hoje, escrever, preparar a comida, ir aqui ou além, faz-me medo; é o movimento que me incomoda, o desfazer o casulo quando eu própria ainda não decidi nascer. Nestes dias devo nascer conscientemente num mundo desconhecido, e não creio sequer que esse mundo já exista para me receber.

[...]

    O preço da Liberdade é uma certa solidão.

[...]

    Por que escrevo nesta língua que Portugal atrasou como um relógio?
    Atrasar uma língua é torná-la inexpressiva.

[...]

    Por que é que não sinto mais amor por quase nenhum dos seres humanos que me rodeiam? Amaria, talvez, um segundo ser que se veria, em filigrana, por detrás. O remorso deste sentimento me faz retomar a palavra remorso que, finalmente, acho bela. Terá ela uma relação subtil com o segundo? Devo reflectir com o Augusto sobre isto, tão complicado para mim. Há, no entanto, indícios que me comovem, espalhados por toda a parte. Pouco a pouco, as minhas casas, jardins, tornam-se feixes de indícios espalhados. Por mim reunidos. Sinto-me, há uns tempos, uma verdadeira mulher de areia. A sede, a extensão desértica, o amor pela noite refrescante, os pensamentos desligados uns dos outros, mas livres como grãos de areia. Num oásis do deserto há o sofrimento angustiante que me espera, a face com máscara.

[...]

    Procuro não perder o som das vozes que me ocorrem porque nada é mais triste do que o lugar vazio deixado por um texto perdido.

Maria Gabriela Llansol
in, NUMEROSAS LINHAS
Livro de Horas III
Assírio & Alvim








 


sábado, 8 de fevereiro de 2014

O erotismo segundo Bataille

Mas essa nostalgia comanda em todos os homens as três formas de erotismo. Falarei sucessivamente dessas três formas, a saber: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado. Falarei dessas formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. (Bataille, 1987:15)

Soul mates

"People think a soul mate is your perfect fit, and that’s what everyone wants. But a true soul mate is a mirror, the person who shows you everything that is holding you back, the person who brings you to your own attention so you can change your life.
A true soul mate is probably the most important person you’ll ever meet, because they tear down your walls and smack you awake. But to live with a soul mate forever? Nah. Too painful. Soul mates, they come into your life just to reveal another layer of yourself to you, and then leave.
A soul mate’s purpose is to shake you up, tear apart your ego a little bit, show you your obstacles and addictions, break your heart open so new light can get in, make you so desperate and out of control that you have to transform your life"


Elizabeth Gilbert in Eat, Pray, Love

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Carta de despedida aos amigos



“Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais.
Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos 60 segundos de luz.
Andaria quando os outros páram, acordaria quando os outros dormem.
Ouviria quando os outros falam e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate…
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.
Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre gelo e esperava que nascesse o sol.
Pintaria com um sonho de Van Gogh as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que oferecia à Lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas…
Meu Deus, se eu tivesse um pouco mais de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo Amor.
Aos Homens, provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês Homens…
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima de uma montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.
Aprendi que quando um recém-nascido aperta com sua pequena mão, pela 1ª vez, o dedo de seu pai, o tem agarrado para sempre.
Aprendi que um Homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer…”
Gabriel Garcia Marquez

Uma mulher apaixonou-se...

"Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida."


Lydia Davis, Contos Completos

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Fazer o amor

Pela minha parte, experimentava, para além do prazer físico e absolutamente real que me proporcionava o amor, uma espécie de prazer intelectual ao reflectir sobre ele. As palavras «fazer amor» possuem uma sedução própria, muito verbal, quando isoladas do seu sentido. O verbo «fazer», material e positivo, unido à abstracção poética da palavra «amor», encantava-me, embora sempre me tivesse referido anteriormente a esta expressão sem o mínimo pudor e sem me dar conta do seu sabor.


Françoise Sagan, Bom dia Tristeza

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Excertos de Malcolm Lowry


(...)
- O albatroz, à meia-noite, aninhou-se no mastro, o grande bico, visto da ponte, doirado na luz movente: quando o bico estava lá fazia uma terceira luz. Finalmente afastou o bico e só se podia ver, de bombordo, as penas da cauda. Era o albatroz mãe. Ficou ali a noite inteira, enquanto no outro mastro, à ré, estavam cinco jovens albatrozes, aninhados juntos, negros... A mãe albatroz trouxera a sua ninhada para bordo para descansar.
Nov. 26. De manhã os tripulantes apanharam um deles para Primrose. O albatroz bebé na amurada com seus pés vermelhos e bico de esmalte azul e penas cor de corça, sibilando. Depois, para minha alegria, soltaram-no. ..
Frére Jacques, Frère Jacques. Dormez-vous? Dormez-vous?
A Costa do Panamá é como o País de Gales. O velho Charon não quis vir ver o albatroz. Depois da captura do albatroz, mais coisas excitantes (...)

Os Solitários


No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que o obrigue a sair para a rua. 

Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'



Excerto de Um bom homem é difícil de encontrar

"mas a avó pusera um chapéu de palha azul-escuro com um ramo de violetas brancas na pala e escolhera um vestido do mesmo tom com pequenas pintas brancas. O colarinho e os punhos eram de organdia branca rematada por rendas e junto ao pescoço tinha pregado um alfinete de violetas roxas com um saquinho aromático. Em caso de acidente, qualquer pessoa que a encontrasse morta na auto-estrada saberia imediatamente que estava ali uma verdadeira senhora."


Flannery O'Connor, Um Bom Homem é Difícil de Encontrar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O investigador de café


Senta-se no café, muito compenetrado, aparentemente sereno. Usa uns óculos com umas consideráveis dioptrias e cabelo naturalmente despenteado.
Num reflexo, constato que lê um livro em inglês grosso e encadernado. Consegue alhear-se das mesas contíguas, da ensurdecedora máquina café e da louça da cozinha. Heroicamente, da despudorada conversa de duas vizinhas, acerca das poucas-vergonhas que se passam no seu prédio, também não o impressionam.
Continua ali impávido, sem uma ruga no sobrolho, no seu vestuário confortável e nada formal, sublinhando com seu lápis Rotring algumas passagens, de vez em quando, talvez de vinte em vinte minutos, levanta a cabeça como se fosse um mergulhador que vem respirar à superfície.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Excerto do Grande Gatsby

"Se a personalidade é uma série de gestos bem sucedidos, havia algo de grandioso nele, uma brilhante sensibilidade às promessas da vida, como se ele fosse parente de uma dessas máquinas intrincadas que registram terremotos a dezesseis mil quilômetros de distância. Essa receptividade não tinha nada a ver com aquela débil impressionabilidade dignificada sob o nome de “temperamento criativo” – era um dom extraordinário para a esperança, uma prontidão romântica que jamais encontrei em outra pessoa e que provavelmente jamais encontrarei."

O Grande Gatsby

Na cervejaria com Ruy Belo

Mas quando Maria se encaminhou para o balcão, descobriu que diante de um acampamento de canecas de cerveja havia um vulto. Não se podia ver da entrada porque estava encoberto por uma coluna de lagostas vivas dispostas numa vitrina quase até ao tecto.

Maria sentou-se ao balcão no sítio onde acabava o estendal de canecas vazias e pousou a malinha e os óculos de sol no banco ao lado. O vulto lia A Bola apoiado numa cerveja a florir de espuma. Era um indivíduo louro e encorpado, um tanto para o gordo; cabeça à meia calva, salpicada dum orvalho que era o transpirar da fresca e esfuziante bebida matinal; mãos mimosas embora sólidas, de anjo camponês (se é que há disso, anjos camponeses). Maria viria a saber que estava na presença do poeta Ruy Belo que só conhecia pelo lido

Como era de esperar, o poeta Ruy Belo ao vivo e em tal e qual não tinha nada que fizesse supor o dos versos. Bebia cavalarmente (coisa que não constava por escrito) pois já tinha com ele uns largos litros de cerveja e ainda a manhã ia no princípio. Lia A Bola com a devoção de quem lia o Plutarco, ao mesmo tempo que mastigava de maneira truculenta tremoços apanhados ao acaso e até migalhas deixadas no balcão sabe-se lá por quem.


José Cardoso Pires

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Medo...

O medo caminha de cabeça erguida neste planeta. o medo quer, pode e manda, próspero e eminente. O medo tem-nos a todos presos por um fio aqui em baixo. É verdade, meu caro. Filha, não te faças de desentendida... Um dia destes vou fazer frente ao medo.Vou fazer-lhe frente. Alguém tem de o fazer. Vou enfrenta-lo e dizer: Muito bem, cabrão, já chega. Já nos andas a dar ordens há tempo de mais. Eis alguém que não te quer aturar mais. Acabou-se. Fora!


Martin Amis

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A sabedoria e a loucura

"Segundo a definição dos estóicos, a sabedoria consiste em ter a razão por guia; a loucura, pelo contrário, consiste em obedecer às paixões; mas para que a vida dos homens não seja triste e aborrecida Júpiter deu-lhe mais paixão que razão."Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura

s de solidão

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Solidão é uma palavra obscena. É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo. Medo – um homem pode dar por si  a cometer crimes sem grandeza. Assassinar, por exemplo. Princípios superlativamente adolescentes. Prefiro a decomposição da pele, uma taberna entre cabeços, o petróleo de candeeiros que projectem sombras imóveis, recantos, pequenos estrumes. E já agora, se me dão licença,  um frio de certo modo inculto a bater no vidro da janela, nos ossos, talvez nos ossos quando se acaba o dinheiro. Mas é humano, bárbaro e humano. Uma espécie de sinfonia entregue ao poder de cada qual, arrecadações da alma, mansas. E dardejante o círculo azul de um copo de aguardente, aguardente, imagine-se, a saltar dentro de si, a subir, a subir, e um homem a dizer, imortal: senta-te, copo. Bebe comigo. E ele senta-se e bebe. É remoto, quase no outro lado das trevas. Mas magnifico, oh, tão magnífico. E ainda há quem me fale de escritores, romances, e até de revoluções. Balelas. Quero uma nora que pare o mundo rente ao ao fogo do inferno. E a água detida, doente, de preferência afogada pela mão de Deus a arder. Nada de riscos. Eis do que falo. Precário, inviolado, entregue ao soalho.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Aconteceu assim...

Aconteceu assim: estavam casados há quarenta e seis anos. Os filhos casaram, saíram de casa ou ficaram pelo caminho. Então tiveram cães. Sete ao longo de quase meio século. (Possuíam uma velha casa húmida, sobre o comprido e estreita e que cheirava a esgotos sem que eles o notassem: sinistro). Nenhum cão foi mais amado do que Júlio, um cão de apartamento, branco e sujo. Era muito meigo e passava o dia a lambê-los até obter o que desejava. Dormia aos pés da cama e aos primeiros alvores da madrugada ia acordá-los com grandes lambidelas. Um dia, a velha ficou cheia de ciúmes, convenceu-se de que ele preferia o seu marido. Calou-se, não disse nada, sofreu em silêncio e tentou conquistar o cão por meio de manhas e guloseimas; mas Júlio continuou, sem dúvida devido a uma escolha firme, a lamber primeiro as mãos do velho. A mulher envenenou aos poucos o marido. Conta-se que o cão morreu no mesmo dia que o dono, mas trata-se de uma liberdade poética; na realidade sobreviveu mais três anos para grande alegria da boa senhora.


Max Aub, Crimes Exemplares

domingo, 26 de janeiro de 2014

Ódio ao corpo...

Ódio ao corpo, andam esses a dizer há dois mil anos, como se neste curto lapso de tempo da história do homem só devesse haver fantasmas descarnados. Ódio ao corpo, o teu e o meu, disfarçado em tarefas vis e loas absurdas, cobardias pequeninas. Nada disso é gente e eu gosto de estar com gente (falo de corpos), um enchimento de gente à roda, compacta, onde recebemos e damos, estamos e lutamos, sofremos em comum e gozamos. Onde tudo de nós é ampliado, revigorado, e medido pelo colectivo, pelos outros - espelho e limite, cadeia e espaço imenso, liberdade e nossa conquista.

Luís Pacheco, Comunidade

A Esperança de uma Relação Profunda


Conhecemos as pessoas durante anos, até mesmo dezenas de anos, habituamo-nos a evitar os problemas pessoais e os assuntos verdadeiramente importantes, mas guardamos a esperança de que, mais tarde, em circunstâncias mais favoráveis, se possam justamente abordar esses assuntos e esses problemas. A esperança, sempre adiada, de um relacionamento mais humano e mais completo nunca desaparece completamente, porque nenhuma relação humana se contenta com limites definitivos, restritos e rígidos. Permanece, portanto, a esperança, de que haja um dia uma relação «autêntica e profunda». E permanece durante anos, até mesmo décadas, até que um acontecimento definitivo e brutal (em geral, uma coisa como a morte) vem dizer-nos que é demasiado tarde, que essa «relação autêntica e profunda», cuja imagem tínhamos amado, também não existirá; não existirá, tal como as outras. 

Michel Houellebecq, in 'As Partículas Elementares'