quarta-feira, 28 de agosto de 2013

História para o meu amigo golfinho

História para o meu amigo golfinho

O mundo
é a bola multicor
que avança
e se equilibra
que dança
no focinho
de um golfinho
que é animal
inteligente
e que dotado
se não fosse
pedir muito
meu amigo
podias agora
simplesmente
deixar de lado
as brincadeiras
deixar-me
no sossego
deste presente
inglório
já tenho a cabeça
à roda
daqui a pouco
tenho as tripas
de fora
e estou a chamar
o gregório
claro também
já aprendi a curvar
a espinha
depois a sardinha
mas nem sempre.

Lisboa, 27 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Bailado para uma despedida



A trama
dos gestos desprendidos
o pretexto das tuas pernas
de tesoura
sobre a fragilidade
de um fio imperturbável
numa pirueta
podes ser a face
de uma solidão em pontas
o peso insustentável
de uma lágrima
traindo-te
no murmúrio dos teus lábios
trémulos na emboscada
onde sobrevives
a um silêncio ensurdecedor
puxas o gatilho da tua festa
fulminas
depois acorres
com teu sorriso acolhedor
na curva fechada do caminho
da tua mão agitada
que descreve o arco
onde estremece o corpo
ameaçado por um olhar
de soslaio
vai vai mulher do cabelo solto
que voa
voa despenteado
abre o ângulo morto
da tua dor calada
deixa que o insulto contido
incendeie a paisagem
e o esplendor do teu vulto
depois todo o estertor
do teu corpo
que seja o bailado
do lenço de seda que acena
no cais do mal entendido
aragem mínima
miragem
na minha sede
de querer que sejas mais
que um poema
que se afasta.

Lisboa, 27 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


domingo, 25 de agosto de 2013

Entre o céu e a terra

                                 “Há mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia"
                                   William Shakespeare





Os seus lábios
dizem um crepúsculo
onde se adivinha
a fecundação
dos astros
em órbita
pelos bosques
a fragância da terra
na orla do sangue
o rumor animal.

O olhar é o arado
que sulca
o veneno ocre
da tua pele ávida
campo aberto
onde se ergue
um fulgor de pássaros
com raiz
no grávido silêncio
das sementes
no céu um deserto.
de anil.

Para a fuga
de todas as estrelas
existe o istmo
das tuas ancas
tudo resto é noite
inexplicável
convergência de amoras
um rumo lancinante
de espinhos
incandescentes.

Lisboa, 25 de Agosto de 2008

Carlos Vieira



                                                     Pintura de Marc Chagall

Charlotte Gainsbourg / L'un part l'autre reste


Nós somos ninguém


Medula
raiz da sede
corrente de desejo
pássaro exímio e efémero
teus lábios fruto de asas abertas
a cortina translúcida de um olhar furtivo
transversal à laguna que acende velas nos barcos 
é nebulosa a madrugada das tuas mãos na medula espinal
eu existo dentro de ti e tu serás o meu abismo e coluna vertebral

Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

                                    " O beijo dos amantes" Pintura de René Magritte

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

No oásis de Ghouta (Damasco)


Sigo pelas estrada 
pelas vielas 
na periferia de Damasco
olho para a casas de branco esventrado
de onde borbota sangue 
de tijolo
na sua sombra o branco do medo
nos olhos das crianças 
encurraladas
perante o estrelejar
veemente dos mísseis e morteiros
tanto tempo depois do aroma dos figos
e do sabor bíblico das tâmaras 
agora adormecem incrédulos
do meio-dia
entregando-se finalmente à doce
inspiração do gaz “sarin”
nos seus lábios a espuma dos dias
dos que chegam ao fim
e tudo parece descansar em paz.


Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

- Ghouta quer dizer oásis em árabe

“Guerra” pintura de Henri-Rousseau

sábado, 17 de agosto de 2013

O sono da razão



Empedernido coração
de penumbra
de onde espreitas
e murmuras palavras
umas gastas
e outras duras.
Nessa caserna
em que escolheste
a tua própria luz
envergonhada
humanidade.
Nesse lugar
de misericórdia
para soldados sós
e desconhecidos
que defendem
o último reduto do silêncio
a recusa do pacto.
Hibernaste
e agora que para ti
não existem baionetas
nem gatilho
nem tempo
sonhas acordar
um novo mundo.

Lisboa, 17 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


                                                     “O Sonho” de Fritz van den Berghe


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Melodia interrompida



Ando de novo 
pelas margens do Lena.
ou pelas margens do Liz
Minha memória 
é esta comoção
afluente de dois rios.
Os teus olhos rasos
pedem uma ponte 
ou um cais.
Os teus pés descalços
e o teu riso límpidos
chapinham no açude
como se fossem peixes 
que de tanto cintilar
ameaçam voo.
Sobre o espelho desta água
que dou caminho
o meu amor 
pode estar
a uma amora de distância.
Os motores de rega
silenciam os rouxinóis.
Enquanto me tentas
de longe
vou escolhendo o calibre
das maçãs.

Lisboa, 16 de Agisto de 2013
Carlos Vieira



                                                       Day on the river. Bill Brandt, 1941

Última oportunidade




Na eternidade da areia dourada a praia
A espuma efémera das ondas
No contratempo dos teus pés
Onde tropeçam os peixes
Nas conchas e nos búzios
Escondem-se segredos
Acende-se a luz
Uma semana
No paraíso
T1/MP 
750€

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Dilema




Sigo-te
pelo mundo
como um cão
que não conhece o dono.
Digo-te
no texto interrupto
em escrita torrencial.
Ali te vivo a ausência
o sono e o naufrágio
do mundo.
Só porque te amo
ser fecundo.
Memória que ferve
de palavras obscenas.
Contra o teu corpo
Todo o abandono
trágico dos poemas.

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Palavras em ponto de cruz



Na contraluz
nós
os deuses
seminus da timidez
manuseando
em nós
de ponto de cruz
uma escultura
a linha branca à volta
da tua dura tez
“era uma vez
o que me seduz
na tua voz…”
essa ternura
balbuciada
a sós
na contraluz.

Lisboa, 14 de Agosto de 2013


Carlos Vieira

                                                  Pablo Picasso “Na sombra de uma mulher”

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Protesto o direito ao teu silêncio

O teu silêncio cúmplice
tem a profundidade das viagens dos grandes cetáceos
e dos sonhos dos grandes homens
Que nem sonham dos grandes perigos
que os cercam
O grande silêncio de te poder escutar 
em todos os objetos da nossa pequena casa
que após o teu toque suave 
respiram o amor das tuas mãos
todo o sono dos justos 
e a insónia dos que sofrem em silêncio
desagua no grande rio das palavras caladas e por dizer
afluente do teu silêncio aflito
De mãe sem respostas aos estímulos
incrédula perante os sintomas
que sofre sozinha todas as ausências
e o silêncio ancestral das memórias
onde reencontro 
envolto de grande mistério do teu corpo nu
debaixo da árvore
onde adormecendo regresso 
e te reinvento numa breve alegria
iluminada de um frémito de folhas
e de pássaros
Reconstruo-te a partir do vazio dos amigos
que já partiram
e dos outros que nunca mais reencontrei
Dessa emoção silente e imaterial 
farei o molde e os nós
de onde renascem e se desatam os abraços
e se vai quebrar o silêncio deste mesmo mundo
Neste mar bravo da vida
e grave silêncio dos antepassados
que deixámos de ouvir
daquele dos injustamente acusados
e dos que vão esboçando gestos 
perante a surpreendente dificuldade das palavras
O teu silêncio meu amor é uma flor desabrochando 
para os que vão partir 
e também para os que estão a morrer
e cujas palavras
não vêem o sol de um último sorriso
Estar aqui 
olhar para ti e por ti e está tudo dito
Minha imensa graça de um poema sem palavras
e em que todas as palavras encontram o seu lugar
o seu ritmo
Tu és meu desejado ermitério 
e meu silêncio
e meu celebrado protesto
daqueles que não tem 
nunca terão voz.

Tojal, 6 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

sábado, 3 de agosto de 2013

Linhas cruzadas


I
Esta noite vi passar 
por três vezes o TGV
nos arredores da terra de ninguém
num ápice
percorria a distância
que separava o sonho
deste apeadeiro.

II
Como seria o mundo se Napoleão
não fosse devorado pelo ciúme
e Josefina estivesse
por ali
disponível
durante a campanha
no wagon lit
imperial.

III
E se Van Gogh
pudesse ir amiúde
de Arles a Paris
e esse comboio
fosse também a sua vertigem de tempo
a lâmina da navalha
a volúpia
que o isola da paisagem
e a desfaz em pedaços
a cada segundo.

IV
O que iria escrever
Júlio Verne
agastado pelo matraquear
do mundo sobre carris
por esta aventura
com passagem de nível e horários
de uma locomotiva arquejante
que se afasta do cais.

V
Nesta noite de insónia
arquivei de vez
este projeto de sonho
em bitola europeia
substituindo-o pela linha do Tua
submersa no futuro
que se cruzava
com tantas outras linhas
que percorri
por vezes
apenas na ardósia e giz da infância
e no carvão da Serra dos Candeeiros
linhas de vida abandonadas
aromas de vindima
e óleo queimado.

Lisboa, 3 de Agosto de 2013
Carlos Vieira