quinta-feira, 15 de junho de 2017

O reencontro da ternura


Sobeja
um pavio mínimo
no gesto oculto 
que te deseja
e faz espevitar
uma brecha de luz
até que se desata
o tal silêncio laborioso
nas danças
clandestinas do olhar
onde se espraia
a solidão das luas
o tempo acrobata
e se distende
o corpo devorado
nas línguas
do fogo posto
entretanto avanças
pela interlúdio
da madrugada
na sua indecisão
de lâminas frias
só elas
poderão suturar
as feridas reabertas
da tua alma
nada inocente
e enfim eliminar
a indiscreta volúpia
do sangue quente
a borbotar
na pressa da foz
de um fim.
Lisboa, 15 de Junho de 2017
Carlos Vieira


"Blue Lovers" Chagall

terça-feira, 13 de junho de 2017

história quase surreal dos meus avós paternos



na ressaca de dois filmes franceses não acabados de ver, desembocaram no delta desta minha primeira noite de verão, o meu avô José e a minha avó Maria Rosa, como dois náufragos que realmente foram, embora quase podia jurar que nunca viram o mar
a casa dos meus avós era num lugar no fim da aldeia, junto à Fonte das Lágrimas, todos os meus familiares viviam na penumbra e movimentavam-se em câmara lenta, havia um pátio habitado por um cão que não parava de ladrar e dois perus que peroravam ao desafio
o meu avô filho de mestre escola, padecia de um alcoolismo patológico, o que o levava a frequentar tabernas esconsas e adegas para o qual não era convidado, atendendo à sua sofreguidão e destempero. foi no entanto boa gente e lia jornais furiosamente toda a tarde, debaixo de um alpendre, notícias requentadas quase sempre de meses, era a única ligação sóbria ao mundo
a minha avó Maria Rosa era muito pequena sem ser anã, sofria de bicos de papagaio e não se dava por ela, debitava uma ternura silenciosa, perfumes de frutas, geleias e alfazema, tinha uns olhinhos pequeninos e poucas palavras, lembro-me que aquilo que havia de mais colorido naquela casa era uns comprimidos que experimentei, felizmente sem consequências de maior, depois levava-me pela mão para o seu quintal, que no meu entendimento de criança era aquilo que era mais parecido com o paraíso
ali deleitava-me na luxúria das cerejas, das nozes, das nêsperas e outras frutas, texturas ou árvores que me esquecia, exigiram de mim a ousadia e a ginástica e os argumentos que mais nenhum outro local da Terra, tão eloquentemente me pôde confrontar, depois chegou a história da serpente, ainda em que momento oportuno e quebrou-se o encantamento

Lisboa, 13 de Junho de 2017


Carlos Vieira

Uma mão cheia de nada


À sorrelfa
se esgueirou
sorrateiramente
nunca mais ninguém
a viu
agora vive à sombra
da imperfeita memória
que por vezes mais afoita
e outras vezes timidamente
o espreita
quando desce
a tolerância ao frio
e na ausência se esfuma
e o deixa outra vez
uma mão cheia de nada
e outra de coisa nenhuma.
Lisboa, 13 de junho de 2017
Carlos Vieira


O drama do árbitro depois do penalti


O árbitro assinalou perentório o castigo máximo.
O guarda-redes está com os nervos à flor da pele, naquela pose de felino ou ave de rapina, no momento imediatamente antes, do ataque ou de precipitar o golpe de asa.
Entre os postes, em cima da linha de baliza, baila no convencimento que desse encanto ou desse equilíbrio instável, se encandeie o marcador do castigo máximo.
Naqueles momentos que antecedem a marcação do castigo máximo, é recorrente o filme da sua vida, que se projeta na sua mente, quanto de ilusões perdidas e alegrias breves, tenta adivinhar o lado por onde vai a bola, da mesma forma que se enganou nas encruzilhadas da sua história irrelevante, mas aquele é o momento, o último reduto da esperança, daqueles que nas bancadas estão com a alma e a respiração em suspenso.
Por sua vez, o adversário toma balanço, depois de ajeitar a bola, no local da grande penalidade, precisamente a onze metros da linha de golo, concentra-se e ainda não tomou a decisão, da direção do chuto, se vai bater rasteiro ou a meia altura, espera o apito para desferir o seu potente remate, está a minutos da glória ou do Inferno, sorri interiormente, depois um arrepio o trespassa.
O marcador do penalti ouve o apito do árbitro, parte decidido para o esférico e desfere com o seu pé direito o seu potente pontapé, a bola sai como um míssil e voa rumo ao vértice superior direito da baliza, no peito do marcador, uma alegre expetativa regurgita, o guarda-redes estira-se num extraordinário golpe de rins e com as pontes dos dedos desvia a trajetória do remate.
O esférico bate com estrondo na barra junto ao poste e desce na vertical em direção à linha de baliza, faz-se um silêncio no estádio, os olhares convergem ansiosos, para o homem de negro, o tempo da decisão parece demorar séculos, o árbitro está aparentemente calmo, parece ir buscar ajuda aos seus deuses ou talvez ao instinto.
Uma pergunta perpassa pela assistência, a bola passou ou não a linha de baliza, ao juiz da partida, toda a sua vida foi lhe pareceu em vão, nesse preciso momento, ainda levou o apito à boca, esse objeto que tantos amargos de boca e algumas alegrias lhe trouxe.
O árbitro não realiza qualquer sinalética que permitisse antever o sentido da sua decisão, dirige-se para a linha lateral junto ao meio campo, não parece estar a fugir, simplesmente regressa aos balneários, sem medo, mais sereno que nunca, a única decisão honesta, justa e equilibrada na sua rápida e tanto quanto possível ponderada reflexão, era uma não decisão.
Optou de forma irrevogável por pendurar as chuteiras e o apito, depois de muito ajuizar, naquele tremendo instante, vislumbrou algo de muito mais delicado e a que até ali atribuíra pouca relevância, a sua tolerância em conviver com a banalidade do seu erro em comparação com o dos outros.
Lisboa, 13 de junho de 2017
Carlos Vieira

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Logradouro

a poesia 
é tantas vezes
um logradouro
já não é casa
ainda não é rua
Lisboa, 10 de junho de 2017
Carlos Vieira

Avivar


Tocar
de ternura efémera
uma vida 
irrelevante
o seu espanto
anónimo
sublinhar
as reentrâncias
o estertor subliminar
avivar-lhe
a ruga e disfarçar-lhe
a nódoa negra
no olhar límpido
acrescentar
a sombra subtil
quase imperceptível
meticulosamente
abrir um caminho
para o mar
e para a palavra
inaudível
e deixar
que o seu vagar
vá destruir
o baixo relevo
que na areia
tornou possível
esculpir
a preto e branco
o seu retrato
e que o mar e a palavra
possam temperar
a tenaz do calor
e que deixe o sal
sulcar a cicatriz
e lhe devolva a cor
e que a dor
que cura
seja a mesma
que lhe faz sobressair
a beleza
e que contra
o esquecimento
viva o rosto sossegado
da tristeza
e ainda que pautado
pelo cabelo
do desalinho
resista
esse antigo acto de amor
amortalhado
de cambraia e pergaminho.
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Depois de uma noite em branco


É inacreditável
como só agora me dou conta
como gosto de branco 
de preencher
esse lugar do esquecimento
onde percebi
o efémero das pegadas
e a penumbra de um voo
a agitar o líquen
na planície polar
e depois do virar
da página do degelo
o recomeçar da vida
no espanto da tundra
carater a carater
num texto singelo
erva a erva
percorrer a superfície
desértica e lunar
entre a impaciência
do animal
na palavra que encanta
e aquela que dispersa
o homem
momentos da angústia
de tanto sopesar
de cores carregadas
de ausência
e de repente uma branca
um desespero
que nos tolda
que te abraça
sucede-lhe a coragem
o instinto de sobrevivência
a caça
pelos secretos interstícios
da alegria
e num lampejo
que fez do lençol branco
camisa de forças
e com ele vincado
de insónias
amarrei a noite
fugi da reclusão
do seu beijo.
Lisboa, 29 de Agosto de 2016
Carlos Vieira