domingo, 28 de agosto de 2016

Histórias breves da guerrilha II


junto
ao silvado bravo
é também o soldado
agachado
na emboscada
medonha da noite
indiferente
devora o melro
a negra amora
e o rapaz sonha
voltar à retaguarda
ao trilho de uma paz
proclamada
e acaricia a coronha
da espingarda
dedo nervoso
no gatilho
Lisboa, 21 de Agosto de 2016

Histórias breves de guerrilha I


Acordou
estremunhado
saiu da tenda
e o luar
iluminava
o ouro infinito
das dunas
e ocultadas
pela penumbra
das mesmas
sobre o silêncio
do deserto
e a profícua
solidão noturna
erguiam-se
certamente
fatídicas
cimitarras
e talvez o tumulto
do sangue
após
a eloquência
que pode ser
a memória
de um beijo
ou o prenúncio
de doces tâmaras
sob a elegância
curvilínea
das palmeiras
o seu coração
estremeceu
perante
a longínqua
nuvem de pó
e no impercetível
desvanecer
das estrelas
ouviu-se um tropel
no pensamento
no entanto
adormeceu de novo
a sono solto
revolto voltou
ao esquecimento
dos desesperados
e quando
lhe bateram
à porta
não se surpreendeu
ao encarar
os pobres soldados
ávidos
do saque prometido
aqueles
na sua infinita
misericórdia
abateram-no
de um só tiro
e deixaram-no
em paz.
Cegos
pela expectativa
das riquezas
e da glória
quem os levará agora
ao esplendor do ouro
nas dunas
e ao mel das tâmaras
na penumbra
das palmeiras
como desvendar
o segredo
que lhe impedirá
a insónia
e temperar
o fel da vitória?
Lisboa, 20 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Andrew Wyeth, "Weather"


Anton Tchekov, "A Mulher do boticário"


O lugarejo de B.., formado por duas ou três ruazinhas tortas, dorme seu sono pesado. No ar espesso o silêncio é total. Ouve-se apenas, ao longe, fora dos limites da cidade, o latido ardido e líquido de um cão que aos poucos enrouquece. É quase o amanhecer.
Há muito tempo que tudo está dormindo. A única que não dorme é a jovem mulher do boticário Tchornomordik, proprietário da farmácia de B… Já tentou deitar-se três vezes, mas, não sabe por quê, o sono teima em não querer chegar. Sentada, a janela aberta, veste apenas uma camisola e olha para a rua. Sente calor, tédio, desgosto. Tanto desgosto que lhe dá até vontade de chorar; de novo, não sabe por quê. Sente um nó no peito que de repente lhe chega a garganta… Poucos passos atrás dela, colado à parede, dorme Tchornomordik e ronca baixinho. Uma pulga esfomeada suga-o a raiz do nariz, mas ele não percebe e até sorri, pois está sonhando que todos na cidade estão com tosse e compram dele, interminavelmente, as gotas do rei da Dinamarca. Nenhuma picada poderia acordá-lo agora, nem um canhão, nem uma carícia.

Escolhas para as crianças sírias







Georges Simenon, excerto do livro "Carta Para Minha Mãe"


«Quantos [homens] houve desde a pré-história? Ninguém sabe. O que se pode supor é que, tal como acontece agora, se bateram uns contra os outros, se mataram uns aos outros, que devem ter lutado contra os vizinhos, os grandes cataclismos cósmicos e as epidemias.
No entanto, todos, mais ou menos, pensaram o seguinte:
- O que é o homem? Quem é o meu vizinho?
Hoje em dia, a etnografia anda à procura dos vestígios desses homens de antigamente, que são, afinal, os nossos avós; nos laboratórios do mundo inteiro a biologia tenta conhecer o homem actual.
No entanto, não conhecemos as pessoas que vivem na porta ao lado, as pessoas com quem nos cruzamos diariamente na rua, com quem trabalhamos lado a lado.»