domingo, 1 de junho de 2014

Hombre

Hombre soy ya vencido,
vástago del horror
y espanto de la nada.
Hombre soy, ya cadáver
herido por la ausencia,
la frustración, la culpa;
por el viejo sentir
de ser distinto y menos
que el resto de los vivos.
Mitad hombre y demonio,
me odio y me castigo
por ser solo una ruina,
este hombre triste y solo
lleno de espanto y miedo.
Hombre soy: hombre he sido.
Hombre fui quizá un día.
Hoy no me reconozco.


IÑIGO LINAJE
Apuntes de una vida
(2004)





Homem sou vencido já,
filho do horror
e espanto do nada.
Homem sou, cadáver
ferido pela ausência,
pela culpa e frustração;
pelo velho sentimento
de ser diferente e menos
do que os outros viventes.
Meio homem e meio demónio,
odeio-me e castigo-me
por ser só uma ruína,
este homem triste e só,
cheio de espanto e de medo.
Homem sou, homem fui.
Homem fui talvez um dia,
hoje não me reconheço.

(Trad. A.M.)

a outra cidade



Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos

tradução de custódio magueijo


Se tu és a égua de âmbar...

Se tu és a égua de âmbar
eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue

Octavio Paz, in Salamandra

familiar III



Tenho três filhas
no timbre 
da sua voz
na luz inquieta 
do seu olhar
na incrível subtileza 
do amor
à flor da pele
deixo-me ficar
embalado
pelo poema 
a decantar o sangue
espesso 
do afecto imperial
que desagua 
na moche
dos seus abraços.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira




familiar II



Despertei
estremunhado
com a sensação 
de asas 
ou de um coração
a bater
fora de mim
ali estava 
a minha filha
esperando
pacientemente
que acordasse
desde esses tempos
que acredito
em anjos.

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

familiar I



saudade
dos teus pés descalços
sorrateiros
pelas manhãs
na abordagem do leito
e de me cobrires de beijos
com manteiga

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Pétala


Da flor 
a pétala
arrancada
asa da dor
pele da sombra 
de onde 
se precipitou
a lágrima
e a abelha
pousou
de onde exala
um perfume amável
pétala pisada
pela inocente 
sandália de couro
da criança
atirada
pela brisa
contra a parede
e a solidão do beco
memória esquecida
de um beijo
deserto.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira