sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Fahrenheit 451

»Número um: sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem características. Este livro pode ver-se num microscópio. Encontraria vida por debaixo da lente, a passar numa quantidade infinita. Quantos mais poros mais detalhes verdadeiramente registados de vida por centímetros quadrado encontrar numa folha de papel, mais «literário» será.


Ray Bradbury, Fahrenheit 451

Ave haiku LVII



Raios e agora 
que deixei partir todos os pássaros 
que me habitavam?

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Na cela solitária da nossa pele

E por isso falamos uns com os outros, escrevemos, telegrafamos e telefonamos uns aos outros, de perto ou de longe, cruzando terra e mar, apertamos as mãos à chegada e à partida, lutamos uns com os outros e até nos destruímos uns aos outros neste esforço algo frustrado de atravessar paredes em direcção ao outro. Como disse uma vez um personagem numa peça, estamos todos condenados a viver na cela solitária da nossa pele.


Tennessee Williams

O amor nunca morre de morte natural

O amor nunca morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira e dos erros e das traições . Morre de doença e das feridas; morre de exaustão, das devastações, da falta de brilho
Anaïs Nin

When you are old/ Quando fores velha

When you are old

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;
How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim Soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;
And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.


Quando fores velha

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

W.B. Yeats (tradução de José A. Baptista)

Warsan Shire 34 Excuses...






estranhas dores


No entanto hei-de falar-vos delas um dia, se me lembrar, se puder, das minhas estranhas dores, em pormenor, distinguindo entre os diferentes géneros, para maior clareza, as do entendimento, as do coração ou afectivas, as da alma (mais bonitas não há) e finalmente as do corpo propriamente dito, primeiro as internas ou latentes, depois as da superfície, começando pelo cabelo e couro cabeludo e descendo metodicamente, sem pressas, até aos adorados pés, lugar dos calos, cãibras, frieiras, joanetes, unhas encravadas, pústulas, gangrena, pé boto, pé de pato, pé-de-galo, pé-de-cabra, pé chato, pé de atleta e outras bizarrias. E, aos que tiverem a gentileza de me ouvir, falarei também, na mesma ocasião, de acordo com um sistema inventado já não me lembro por quem, daqueles instantes em que, sem se estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada.


Samuel Beckett