O árbitro assinalou perentório o castigo máximo.
O guarda-redes está com os nervos à flor da pele, naquela pose de felino ou ave de rapina, no momento imediatamente antes, do ataque ou de precipitar o golpe de asa.
Entre os postes, em cima da linha de baliza, baila no convencimento que desse encanto ou desse equilíbrio instável, se encandeie o marcador do castigo máximo.
Naqueles momentos que antecedem a marcação do castigo máximo, é recorrente o filme da sua vida, que se projeta na sua mente, quanto de ilusões perdidas e alegrias breves, tenta adivinhar o lado por onde vai a bola, da mesma forma que se enganou nas encruzilhadas da sua história irrelevante, mas aquele é o momento, o último reduto da esperança, daqueles que nas bancadas estão com a alma e a respiração em suspenso.
Por sua vez, o adversário toma balanço, depois de ajeitar a bola, no local da grande penalidade, precisamente a onze metros da linha de golo, concentra-se e ainda não tomou a decisão, da direção do chuto, se vai bater rasteiro ou a meia altura, espera o apito para desferir o seu potente remate, está a minutos da glória ou do Inferno, sorri interiormente, depois um arrepio o trespassa.
O marcador do penalti ouve o apito do árbitro, parte decidido para o esférico e desfere com o seu pé direito o seu potente pontapé, a bola sai como um míssil e voa rumo ao vértice superior direito da baliza, no peito do marcador, uma alegre expetativa regurgita, o guarda-redes estira-se num extraordinário golpe de rins e com as pontes dos dedos desvia a trajetória do remate.
O esférico bate com estrondo na barra junto ao poste e desce na vertical em direção à linha de baliza, faz-se um silêncio no estádio, os olhares convergem ansiosos, para o homem de negro, o tempo da decisão parece demorar séculos, o árbitro está aparentemente calmo, parece ir buscar ajuda aos seus deuses ou talvez ao instinto.
Uma pergunta perpassa pela assistência, a bola passou ou não a linha de baliza, ao juiz da partida, toda a sua vida foi lhe pareceu em vão, nesse preciso momento, ainda levou o apito à boca, esse objeto que tantos amargos de boca e algumas alegrias lhe trouxe.
O árbitro não realiza qualquer sinalética que permitisse antever o sentido da sua decisão, dirige-se para a linha lateral junto ao meio campo, não parece estar a fugir, simplesmente regressa aos balneários, sem medo, mais sereno que nunca, a única decisão honesta, justa e equilibrada na sua rápida e tanto quanto possível ponderada reflexão, era uma não decisão.
Optou de forma irrevogável por pendurar as chuteiras e o apito, depois de muito ajuizar, naquele tremendo instante, vislumbrou algo de muito mais delicado e a que até ali atribuíra pouca relevância, a sua tolerância em conviver com a banalidade do seu erro em comparação com o dos outros.
Lisboa, 13 de junho de 2017
Carlos Vieira