sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Os Amigos


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada; 
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

Ferreira Gullar


Humanity


“Last Night at the Lake” by Leslie Anderson


Escriturar

depois que lhe quis dar voo
não volto a ler o poema
porque sempre descubro
o escriturar das imparidades
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira

Histórias de tempo de amor e morte


I
ela era pedra quente e relógio de sol
ele apenas a sombra esguia do ponteiro
a refrescar o silencioso mármore da sua pele
II
ela era silício de flores e o relógio de água
ele uma fonte inesgotável
a suplicar trégua ao tempo de traidores
III
aquela serenidade é quase eterna
não fosse a impunidade que suporta
e a noite que os liberta
IV
o corte da carótida pelo punhal
que he ceifou a vida definiu o labor do cinzel
e lhe esculpiu o amor na morte
V
quantas vezes sinto que morri em ti
o eco na memória da tua mão e coração de pedra
medra ao roçar a tua combinação de seda
VI
por quanto tempo seremos o desencontro de dois rios loucos
que sorrimos sem graça e que morremos aos poucos
para quando outra vez tréguas de água viva
numa qualquer alcobaça
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Na Quinta do Norte

No dia 28 de Julho de 1927 nasceu John Ashbery, poeta que disse:
"Eu não entendo o bastante acerca de perceber poesia. Eu vivo os poemas com prazer: se eu os entendo ou não, não estou muito seguro. Eu não quero ler qualquer coisa que eu já sei ou que poderá tornar-se de leitura fácil: tem que haver algum desassossego, uma certa capacidade de resiliência."
E escreveu "Na Quinta do Norte":
Algures alguém está viajando furiosamente em tua direcção
a uma incrível velocidade, viajando dia e noite.
Através de planícies geladas e desertos escaldantes, transpondo correntes, esgueirando-se por desfiladeiros.
Mas ele sabe onde te encontrar
Reconhece-te quando te vê
Dá-te aquilo que tem para ti?
Arduamente algo cresce aqui,
Ainda os celeiros estão a rebentar de alimento
Os sacos de farinha empilhados até aos tectos
as correntes correm suavemente, alimentando peixe;
Pássaros escurecem o céu. Isso é suficiente
que um prato de leite seja colocado à noite na tua mesa,
O que pensamos dele por vezes,
por vezes ou sempre, com um misto de sentimentos.