sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O apocalipse após um sorriso


Ela
não se deu conta
daquela 
linha escura
que lhe descia
pela brancura
do rosto
nela
enquanto sorria
cintilava
a memória
de amêndoa
no sol posto
de um beijo
o mel
na janela do olhar
só soube
do sal
e da amargura
no amargar
do rímel
a entrar
pelo canto
da boca
só depois
perdeu a calma
e ficou louca
de uma loucura
definitiva
e sem alma.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Poema à inútil eternidade


O saco de plástico
cheio de ar
de nada
levanta voo
uma ideia
sobe sobe
o gesto evasivo
um projeto
de estrelas
o amor passageiro
que se escapou
uma subtileza
a história breve
a transparência
do saco de plástico
leve leve
precário
onde nadou
o peixe vermelho
e transportou
o pão e o tempo
paira o saco
uma nuvem
como um sonho
que vive e vive
um devaneio
de vento
onde vai cair
ninguém sabe
poluir o mar
amarrar de novo
o peixe
amarfanhado
no desespero
de um momento
estandarte
rasgado a drapejar
sobre o sofrimento
lembrando
batalhas
sem sentido
por fim
enterrado
num baldio
pulmão do vazio
respirando
no ar que lhe resta
a festa
do país da inutilidade
da sua vida eterna
e sem raiz
que o liberte
da obscuridade.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Primeiro dia de praia


Deito-me
na areia fina
na contingência
ausente
do seu corpo
dourado
e pressinto-lhe
peixes furtivos
mar bravo
beijos
de espuma
a despertar
memórias
entre farrapos
de bruma
de teus seios
ostensivos.
Lisboa, 2 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Foto de Alex Bramwell

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Agent Provocateur


Um pixel
esse beijo
de mordida 
digital
e o sangue
a esvair-se
em downloads
sucessivos
pelo território
de plasma
da solidão
alagada
no écran
vermelho vivo
a morte
devagar
frame a frame
navegas
porque amas
o cadaver
esquisito
que se ergueu
do tablet
em disparos
contra o tédio
à Tarantino.
Lisboa, 27 de Junho de 2016
Carlos Vieira


"Agent Provocateur" Clif Spohn

A exaltação do corpo e das estrelas


O acordeão
exaltava na planície
uma urgência
de brisa
aquela mão
sôfrega
desconcertante
a soltar
botão a botão
a sua blusa
a deflagrar
no seu corpo
uma constelação
de estrelas
onde rodopiava
a febre e a festa
tão pueril
o baile da aldeia
mas no final
sobrepôs-se
em êxtase
um caleidoscópio
de essências
numa loucura
de resinas
a adornar
em frescura
e fogo a pele
o corpo seminu
iluminado
pelo cinzel
da lua
crescente
dentro dela
sobre o pinhal.
Grândola, 25 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido


Imagem de autor desconhecido

Herberto Helder - Tríptico II


A uma sílaba de distância


Não mais
soletro
na tua pele
memórias
de flor de sal
e vestígio de mel
agora
na minha língua
apenas essa sílaba
antes do pó
e da lágrima
esse pigmento
ancestral
em que o pincel
só faz um risco
a ferir a tela
talvez a cauda
de estrela
e esse clamor
imaculado
da ausência
talvez o estertor
de um uivo
de lâmina
ou de trompete
interrompida
a nota final
no beco sem saída
do amor
ou da vida
tudo a acontecer
à boca da noite
a lua
já não será
tua mão aberta
dentro de mim
calou-se a melodia
o grão de oferta
agora cresce
sem razão outro muro
uma erva de ilusão
e clorofila
o teu gesto límpido
o sémen triste
constroem
outro futuro
onde vai irromper
esse mistério
que apenas
germina
no coração
em silêncio
e subsiste
uma convulsão
de lanças
e de pétalas
a esgrimir
num dia de sol
as sombras
que nos acentuam
a distância e o fim.
Lisboa, 18 de Junho de 2016
Carlos Vieira