domingo, 21 de agosto de 2016

Pedras com sonhos de curta duração


Chegou ao lago
escolheu uma pequena pedra
fez-lhe um afago
memória esguia e abaulada
que colocou
entre o indicador e o polegar
fez o gesto antigo
de infância
deu-lhe um seco impulso
de chicote
ouviu-se o eco no ar
do pequeno seixo
a palpitar
sobrevoando
ou a chapinhar
mais à frente
ali fez meia dúzia
de círculos
no espelho de água
por momentos levemente
encrespado
o pássaro pedra
após o voo rasante
por fim exausto
mergulhou profundamente
voltando
à sua vivência mineral
agora em águas profundas
na sua mão
ficou uma leve
sensação de vazio
um pequeno resquício
de lama
e sopro de vida
que partiu.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Tempo quase morto


Está um tempo de trovoada
de interlúdio
de antecâmara
de véspera de água
de orquestra e respirações
tempo em suspenso no início
da submarina sinfonia
de regresso a um silêncio
de insectos a adivinharem emboscadas
tempo de clarividência de moribundo
de nós na garganta de um amor que se desfaz
que se extinguiu na incandescência
da palavra inventada para aquele momento
tempo do estertor nas entranhas de um mundo
que certamente se vai desmoronando
segundo a segundo
enganamo-nos nesta tépida solidão
de cada um sermos
ao fim e ao cabo únicos
e ao mesmo tempo todos
deslocados
tempo de sorrisos
e melancolias e penumbras
de alguns sobreavisos e de relâmpagos
cintilando nas almas e corações
construímos um tempo do conforto
servindo a Deus e ao Diabo.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

As flores estão mais belas no jardim...

as flores estão mais belas no jardim
será porque dantes passava por elas
e agora elas passam por mim?
Lisboa, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Uma andorinha...

uma andorinha na manhã
dá cambalhotas de asas molhadas
onde irá cair?
Loures, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Fado Loucura - Ana Moura


Delação


Enquanto dou o despacho
vespertino
absolutamente neutro
“Visto.
Prossiga.”
desce pela chaminé
da lareira
no arrulhar da rola
um incandescente
segredo
a caneta sucumbe
sob a secretária
do aparo
aspiro o aroma
familiar
de tinta permanente
de um azul inquisidor
no murmúrio
menos abundante
da chuva de primavera
sou um espectador cego
perante o silencioso
desabrochar
glorioso da flor
e enlouquece-me
na seiva
o seu secreto rumor.
Loures, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

O vazio desenhava desde sempre


O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
ardente perfeição da tua ausência
Sophia de Mello Breyner Andresen