domingo, 21 de agosto de 2016

Contumaz


Vivia nesse estado permanente de contumácia
de amar desmesuradamente
faltando a todas as citações e julgamentos.
Lisboa, 1 de maio de 2016
Carlos Vieira

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo 
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.
Fernando Echevarría, in Sobre os Mortos

Não sei como dizer-te


Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milgares
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.
*Herberto Helder

Felicidade

"Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, 
guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol."

Fernando Pessoa

Não Deixeis um Grande Amor


Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa
assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava
assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro
não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha
não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidencias negava
por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo
José Tolentino Mendonça, in Longe não Sabia

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Relatório de observação no sopé 1


as nuvens eram brancas
assomam nos contrafortes
e rastejam
pelas encostas poente
da serra
são um bom augúrio
nas vozes dos velhos anciãos
ecoando de antepassados
escuta-se da alcateia
os uivos tão próximo
e tão raros para a aldeia
como a sua fome
e a sua falta de presas
Serra da Estrela, Abril de 2015
Carlos Vieira