domingo, 21 de agosto de 2016

Não sei como dizer-te


Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milgares
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.
*Herberto Helder

Felicidade

"Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, 
guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol."

Fernando Pessoa

Não Deixeis um Grande Amor


Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa
assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava
assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro
não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha
não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidencias negava
por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo
José Tolentino Mendonça, in Longe não Sabia

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Relatório de observação no sopé 1


as nuvens eram brancas
assomam nos contrafortes
e rastejam
pelas encostas poente
da serra
são um bom augúrio
nas vozes dos velhos anciãos
ecoando de antepassados
escuta-se da alcateia
os uivos tão próximo
e tão raros para a aldeia
como a sua fome
e a sua falta de presas
Serra da Estrela, Abril de 2015
Carlos Vieira

Volta


Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.
Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.
Konstantinos Kaváfis
(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).

Lá fora...

lá fora
uma algazarra
ou dentro de mim
não sei
fui saltar ao eixo
e jogar à apanhada
no recreio da escola
só esse intervalo
me garante
a lucidez das palavras
e a certeza das contas
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Um dia de férias comigo mesmo


Meti um dia de férias
e não sei porque o meti
e a quem interessa este assunto afinal?
um funcionário burocrata
manga de alpaca
que faz um intervalo no despacho
um átomo às voltas na galáxia
acontece
que não tinha nada de especial
nada pendente
não foi porque estava muito cansado
nem sei se já nasci assim
o que é um facto
é que estou cada vez mais cansado
preciso tirar férias
deste meu mundo hipotecado
não que alguém tenha culpa
tenho de tirar férias da minha culpa
das noites se confundirem com os dias
chegou momento em que contabilizamos
aquilo que deixamos por fazer
tanta coisa
sempre tive dificuldade em estabelecer prioridades
primeiro porque penso que tudo é prioritário
depois porque desvalorizo ou menosprezo
e tanta coisa se acumula
vivemos aquilo
que tanta gente considera muito importante
e nós onde nos perdemos de nós?
sento-me aqui
à espera que me apareça uma ideia
que venha ter comigo
como aqueles lavradores de pelo macio e tão dóceis
que vem lamber as mãos dos donos
estranho ocaso neste dia de férias
não me apetece ler
como costume
livros esquecidos na última prateleira da estante
e que um dia jurei ler
ouvir música clássica
nem ver um filme “noir” dos anos cinquenta
nem passear ou ir a um museu
essa coisas para as quais a normalidade nos impele
hoje não estou no mercado
e eu não sou eu
estou hoje disponível para essa coisas
classificadas de desinteressantes
gosto deste mundo
que vive na sombra
nos bastidores
onde apenas nós podemos entrar
entre o sofá e o nada
existe aquela almofada caída
e uma razoável falta de chá
vai ficando lassa essa corda que vibrava
e que dava outra emoção ao gesto
e um brilho único a um olhar
tudo enferruja ou se estraga
perante as intempéries e a falta de uso
hoje longinquamente uma vozes
na rádio sintonizada
a dizerem que gostam mais de bolos que de sexo
e dos tolos e dos fracos não reza a história
não tenho nenhum animal
no meu quotidiano
só a minha máquina de secar roupa
tem um estranho latido
qua acaba num ruído infernal
interpela-me perante a minha incapacidade
desses pequenos trabalhos
de reparação doméstica
de reparação de mim e dos outros
apenas consigo mudar um fusível
e usar uma chave e distinguir
um parafuso com cabeça de estrela
nunca fui bom de mão
que merda esta minha lassidão
de estar na sala de espera
da eternidade
quando ainda tanta coisa na vida nos convoca
confronto-me com a televisão
que uso desligada
e onde se reflete
a minha vida cinzenta
tanto esforço e sofrimento
para esta sensação mais frequente
de tão pouco prazer
felizes são os sado-masoquistas
deixam-nos ir
perdemos-nos nesse oceano
de inutilidade à deriva e do grande gesto fútil
que num certo momento
não soubemos
podemos evitar
não tenho a certeza se for por isso
que marquei este dia de férias
de qualquer forma já de poucas coisas tenho a certeza
um curto circuito nessa vida
de todos os dias
obrigou-me
a voltar para dentro de mim
e assim voltar a ocupar-me dos outros
pessoas de carne e osso
e coração
e não apenas essas sombras que convivem
com nossa sombra
sorrir sem ser por adereço
abandonar esses gestos a fingir
de voluntário e de boa pessoa
e de que é tudo boa gente
sem pecado
todos de humanidade à prova de bala
que raio hoje vou deixar-me vencer
e assim derrotar a máquina
que me canta as tretas açucaradas
da disponibilidade vinte e quatro horas
vou deixar de ter esse espírito
meticuloso e sagaz de detetar o erro
da iniciativa
estou farto de criar e dar novos mundos ao mundo
e "que ninguém me dê conselhos"
esgotou-se a minha capacidade de sofrimento
e isso que agora exponencia
como um qualidade superlativa
a resiliência
essa fantástica maravilha que é a assertividade
deixem-me a sós
com as minhas inqualificáveis
e saborosas fraquezas
tirei um dia para descansar
do mundo
ser inesperadamente associal
de ser o anti herói livre
e de servir para pouco
e ninguém servir.
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira