sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Blues para um desconhecido


Era um homem
nobre
que só levava
a sério a vida
ébrio
um dia
numa noite
em que estava
sóbrio
resolve jogar
à roleta russa
uma bala
desenhou-lhe
na parietal
do crânio
a auréola
de uma flor
vermelha.
Mais tarde
no funeral
da segurança social
do homem nobre
num dia de chuva
perguntaram-lhe
"- Quer despedir-se,
vê-lo uma última vez?"
acenou que não
guardaria do pobre
a imagem
do homem
desconhecido
que sorria,sorria, sorria
sem sentido.
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

O copo é uma apagada lanterna

o copo é uma apagada lanterna
que repousa no balcão
a sua mão no vazio
sobrevoa a taberna
em voo inábil
eloquente e último
e tardio
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

In vino veritas


ou da dificuldade
de perceber o copo
meio cheio ou meio vazio
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Mais uma pequena história de um naufrágio irrelevante


A grande
mão nocturna
do farol
europeu
acende nos escolhos
uma coroa
de espuma
de morte
e sal.
É o seu uivo
de animal
ferido
que irrompe
seminal
neste lugar
de cinzento
e bruma
de visto
e tinta
permanente.
Aqui
os navios
comparecem
ao ritual
e se afastam
ou se afundam
no inox
das ondas
e das lâminas
mediterrâneas.
Náufragos
naquele uivo
que lhes desgoverna
o leme
e a vida
daquela mão
brutal
pragmática
que tanto treme
sentimental
e mata
de intermitente
cegueira
interior
continental.
Lisboa, 18 de Abril de “016
Carlos Vieira

Joseph Mallord William Turner "The Eddystone Lighthouse in a Storm at Night, with Shipping c."1813

Linhas no mapa

Linhas no mapa
Separam a fome da comida.
só linhas.
David Rodrigues

The Balance























“ The Balance ”, Christian Schloe

Amou tanto

Amou tanto
Agora era velha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito. Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com o guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.
Tonino Guerra, "Histórias para uma noite de calmaria"