sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Histórias de uma mulher ferida de melancolia


Deu início
à tarde
iluminando-a
ali
desfraldou
o seu sorriso
largo
último
da sua curta
vida.
Lembro-me
de por ali
ter ficado
ancorado
na visão de ti
eras o tranquilo
estuário
na desculpa
do café.
Nesse tempo
a tua mão
era a brisa
a dedilhar
a versão
matinal
de uma neblina
de verão.
A tua tez
clara
na leveza
das linhas
do rosto
não resistia
a um olhar
mais atento
e o rubor
indelevel
que o tingia
não coincidia
com o fogo
interior.
Podia-se
descortinar
a imperceptível
ondulação
de uma tristeza
a confissão
de um percalço
num passado
não muito
distante.
Prometia tudo
o que tinha
e o que não tinha
no seu olhar
podia adivinhar
a sua alegria
a subtileza
de um mistério
por revelar
o entreabrir
das pálpebras
de tristeza
ao cair
da tarde.
Percebia-se
a entrega
e a gratidão
nos olhos
semicerrados
e no arco
do espanto
o manto
do crepúsculo
cobria
a nudez
do seu dorso.
As palavras
eram frutos
agridoces
que se desfaziam
em silêncio
na boca
ávida do beijo
que lhe foi
negado.
Caminhava
distante
pelo perigosos
territórios
dos aromas
dos salgueiros
despiu-se
para se banhar
por debaixo
do chilrear
dos rouxinóis
e emergiu
um torso
em ouro de sol
no espelho
de água
fresca.
Os peixes
a escorregar
nos caracóis
dos cabelos
murmurando-lhe
o segredo
das nuvens
que espiaram
a vida toda
das naus
e de viagens
imaginárias.
No seu seio
amadureceu
o tempo
dos amantes
que ali foram
beber
seu doce
veneno
depois
foi o abandono
à melancolia
e a insensatez
da culpa
e da razão.
Lisboa, 9 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Mulher azul de Picasso

Asas do desejo


Magnífico
e terrível
é o acto de sopesar
por um lado
a sensualidade
da matéria
devendo
para tal
permitir-se
um mínimo
abandono
a que falta a alma
e por outro
habitar
essa amendoeira
do espírito
a que falta o objecto
o fruto
o perfume
e sabê-la essencial
para sobreviver
ao caos
e no entanto
apenas os pássaros
que se libertam de si
esses objetos voláteis
tem a mais exata
percepção
da volúpia do voo
e do ramo
onde devem pousar
e do tempo
e do relevo
do timbre
do seu canto
para poder
evitar o vórtice
ou o silex
que nos cegam
nas asas do desejo.
Lisboa, 5 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Cirurgia a fractura da tíbio com epidural


Naquele desvio
o anestesista
criou um canal
de irrigação
inventou
um rio
a transbordar
de imaginação
a noite
corria-me
na veia difícil
e confundia-se
com o dia
de uma simples
operação
sóis benévolos
reguláveis
pendiam
do tecto
havia marcianos
verdes
de máscara
e sangue
impávido
na pendência
dos recipientes
naturezas mortas
de inox
reflectiam
as cenas
dos próximos
capítulos
e um sono
epidural
a espraiar-se
em delta
na larga foz
dentro de mim
sempre
muito mais
sentimental
que cirúrgico.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Retrato de um homem pouco emotivo


No talho doce
do tronco de bétula
permanece o seu gesto
tranquilo e teatral
à direita de quem entra
apenas o conspirar
do rumor da seiva
que precede o silêncio
enquadrado da gravura
e a barba aparada
depois o fato cinzento
do retratado em pose
que aguarda o hino
sem se desfazer
de um olhar limpído
do bosque de súbito
pode surgir a lâmina
em cloreto de prata
e um pensamento
a preto e branco
que antecede piedoso
golpe ou assassino
muito eugénico
e de repente o ar
tornou-se irrespirável.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Retrato de Joseph Goebbels

domingo, 3 de abril de 2016

Na Páscoa...

na páscoa ao cruzar
o teu olhar de amêndoa
fez-me ressuscitar

Lisboa, 27 de Março de 2016

Carlos Vieira

A menina...

A menina
à minha frente
masca
pastilha elástica
distrai-se
a insuflar balões
de dez em dez
segundos
cria e destrói
novos mundos
com pouco açúcar
e muito fôlego
nada de dramas
tudo fácil
uma brincadeira
de crianças.
Lisboa, 3 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

O frio...

“O frio é a porta do desaparecimento, a proximidade do não-ser”, diz o poeta e ensaísta Antonio Gamoneda, autor de Líbro del Frío (1992) e uma das vozes mais poderosas e singulares da poesia espanhola.