sábado, 26 de março de 2016

Nota epistolar I


Naquele tempo
o homem caminhava
por atalhos
cozido pelos alpendres
e esquinas
olhares emboscados
apedrejavam-no
como a um cão vadio
escorraçado
e pareciam dizer
ali vai aquele
que mordeu a mão
a quem lhe deu
de comer
por amor à justiça
algo no entanto
na cidade
ficou por saber
se este era um caso
de ingratidão
ou o preço a pagar
pela liberdade.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Imagem Argyle Palias em Flickr

Por entre o garatujar

Por entre
o garatujar
de um intrincado
despacho
vou sopesando
observo
o gato prateado
emboscado
atrás do tronco
de uma faia
em suspenso
o gesto felino
e o burocrata
sem golpe de asa
cercados
por um amável
muro
cor de rosa.
Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

Entre teias...

Entre teias de aranha
procuro despojos
esquecidos de infância
vasculho no sótão
antecâmara das noites
de tempestades
e de sonhos perdidos.

Carlos Vieira
Lisboa, 10 de Março de 2016

Pessoas de família

Não cuido muito
das flores
da minha varanda
umas
as exteriores
crescem espontaneamente
vão à procura
da luz
outras
as do interior
alimentam-se
na penumbra
dos murmúrios
e do humor
umas e outras
me parecem
no seu silêncio
atento
no seu gesto
invisível
pessoas de família.

Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

As longas baionetas do sol...

As longas baionetas
do sol de inverno
cauterizam
as mais profundas
feridas da ausência
e travam a progressão
dessimulada da solidão.
Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo XIII


O cavalo
boceja
na estátua 
o herói
está agastado
com teias
de aranha
no bigode
um miúdo
do nada
de skate
é um raio
de luz
a resvalar
pelo dorso
do poema.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo XII


Na montra
os relógios
marcam todos
a mesma hora
e estão todos
adiantados
cintila a poalha
no mostrador
branco
esquecidos
do tempo.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira