II
no gume das esquinas
nos círculo da penumbra
olhares acutilantes
III
a incontroversa demência
dos semáforos
face aos olhos azuis
e os lábios vermelhos
da transeunte
IV
no primeiro andar
com o focinho entre as grades
um pequeno cão ladra
aparentemente sem sentido
V
nas esplanadas ao meio da tarde
as folhas pousadas na mesa
muda-se de estação
vira-se a página
VI
uma buzina insiste
perde a razão
na sua estridência
não se ouvem as nuvens
VII
uma fila
na paragem do autocarro
na vida contemporânea
uns sentados outros de pé
VIII
não há muita gente nesta praça
que venha para dar milho aos pombos
quase sempre os mais velhos
e os mais pobres
IX
no jardim público
a relva está bem tratada
não lhe chegaram os cortes
nem as crianças
X
nas voltas da nossa vida
o tráfego é caótico
uns a sair e outros a entrar
tanta via de sentido único
XI
no meio da praça
a estátua de mármore
olha-nos do seu pedestal
nós somos as estátuas
de carne no meio da rua
XII
faz este vento frio
entra para o túnel do metro
em busca de calor humano
sai com memórias
de óleo queimado
XIII
acende
o guarda chuva
e "apagua-se" no seu mundo
XIV
olha para os arranha-céus
para os reclames de néon
e para as montras em saldos
tudo coisas de deuses humanos
que cintilam mais
para homens de bolsos vazios
XV
a lua brilha
nos carris dos elétricos
mais tarde deles vão saltar faúlhas
e ficará o eco estridente dos freios
a propósito do nada e de tudo
uma festa em movimento
XVI
chove no cimo da calçada
elegante é a senhora e o macaco
em contraluz e o cinzento do céu
apenas um senão
ninguém pára para ajudar
na mudança do pneu
XVII
nas lojas de comércio tradicional
apenas param as moscas
há produtos fora de prazo
demasiado maduras as frutas
e os planos dos resistentes
XVIII
um guindaste
amarelo enferrujado
agoniza
na obra inacabada
uma mulher corre
esbaforida
a sua vida tem sempre
tanto por fazer
Lisboa, 27 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira