domingo, 27 de dezembro de 2015
Instantâneos de Lisboa
I
Da torre
já não parte ninguém
nem ninguém de saudade morre
nem nas masmorras
sem esperança os homens esperam de pé
a mudança da maré
matriarca resignada às mágoas entre ameias
a obervar as pontes no cruzar das águas
desce por vezes ao Tejo a olear os pés
II
os navios cruzeiros
passam com seu vagares sobranceiros
em avanço paquidérmico
tem mil olhares hexagonais de coleópteros
a devorarem paisagens e a enjoarem milhas
e panorâmicas imagens
III
as gaivotas passeiam
não se comprometem muito empertigadas
muito senhoras de si e de bico calado
as gaivotas fogem das tempestades
deambulam debaixo dos pinheiros mansos
vacas raquitícas a tosar a relva
IV
nós os turistas somos uns fingidores
equilibramos a balança de transacções
convencidos de nós mesmos
aos turistas basta-lhe
um fim de semana para obterem
um salvo conduto para a eternidade
os turistas resistentes da liberdade de circulação
disparam as suas máquinas reflex
de 24 megapíxeis
V
a todo o comprimento
das vidas que vagueiam nas margens temos o rio
e as bicicletas em contra-corrente
o rio e os seus mistérios submersos
o que não conta e tudo aquilo
que mais cedo ou mais tarde virá à superfície
o rio com raiz
na libertação das entranhas da terra
e de sonhos desfeitos no refluxo da foz
também o rio esconde no seu leito
algo de inconfessável e no remoinho
uma prosaica falta de ar
depois por último
“but not the least" temos este rio vivo
no dia da morte do Rio Doce
Lisboa, 5 de Novembro de 2015
Carlos Vieira
Temperamento
Sem te dares conta
espreito o teu gesto
impressionantemente
esbelto e complexo
a pairar sobre a simplicidade
dos legumes
a tua alegria tranquila
a afagar os vegetais
que seleciona
a brincar com as porções
de tempero
e no final
sempre me surpreendes
no inesperado voo
em que me estendes
a pequena colher de pau
acompanhada
pela fórmula mágica.
“- Vê, se está bem de sal!”
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
O Bule
O bule
de asa altivo
na sua pose aristocrática
entre chávenas e scones
quem diria que ferve
em pouca água
de asa altivo
na sua pose aristocrática
entre chávenas e scones
quem diria que ferve
em pouca água
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
Fita-me...
fita-me
o grande olho
da máquina de lavar roupa
depois fica embaciado
raso de água e regurgita
eu, eu ando às voltas
pela noite dentro
em busca dos pensamentos
mais enxutos
o grande olho
da máquina de lavar roupa
depois fica embaciado
raso de água e regurgita
eu, eu ando às voltas
pela noite dentro
em busca dos pensamentos
mais enxutos
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
era meia noite em ponto
era meia noite em ponto
gelado
um copo de leite magro
foi derramado
pelo tampo de mármore
sobre o tempo
gelado
um copo de leite magro
foi derramado
pelo tampo de mármore
sobre o tempo
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
terça-feira, 17 de novembro de 2015
Tão grave...
Tão grave
é o esquecimento
como o desencontro
com as palavras
essa impossibilidade
de compreender
a distância
de contornar
a solidão
é o esquecimento
como o desencontro
com as palavras
essa impossibilidade
de compreender
a distância
de contornar
a solidão
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
auscultar-te...
auscultar-te
ter o exacto diagnóstico
daquilo que em ti me dói
sinfonia sentimental de ouvido
sem partitura
ter o exacto diagnóstico
daquilo que em ti me dói
sinfonia sentimental de ouvido
sem partitura
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira
Carlos Vieira
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