domingo, 27 de dezembro de 2015

Temperamento


Sem te dares conta
espreito o teu gesto
impressionantemente
esbelto e complexo
a pairar sobre a simplicidade
dos legumes
a tua alegria tranquila
a afagar os vegetais
que seleciona
a brincar com as porções
de tempero
e no final
sempre me surpreendes
no inesperado voo
em que me estendes
a pequena colher de pau
acompanhada
pela fórmula mágica.
“- Vê, se está bem de sal!”
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

O Bule

O bule
de asa altivo
na sua pose aristocrática
entre chávenas e scones
quem diria que ferve 
em pouca água
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Fita-me...

fita-me
o grande olho
da máquina de lavar roupa
depois fica embaciado
raso de água e regurgita
eu, eu ando às voltas
pela noite dentro
em busca dos pensamentos
mais enxutos
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

era meia noite em ponto

era meia noite em ponto
gelado
um copo de leite magro
foi derramado
pelo tampo de mármore
sobre o tempo
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Tão grave...

Tão grave
é o esquecimento
como o desencontro
com as palavras
essa impossibilidade
de compreender
a distância
de contornar
a solidão
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira

auscultar-te...

auscultar-te
ter o exacto diagnóstico
daquilo que em ti me dói
sinfonia sentimental de ouvido
sem partitura
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Mãe, chegaram notícias outra vez de Paris


Espreito teu vulto
sentada sobre a erva macia
do teu peculiar modo de olhar o mundo
o sol a prumo estava pendurado à tua espera
em jeito de provocação tiravas o chapéu de palha
respiravas ao de leve e pausadamente inclinavas a cabeça
para trás em suave declive até fixares o olhar no céu azul
até deixares de ser apenas uma ficção e te despenhares na realidade
eram palavras as aves que partiam de ti num aparato de primeiro voo
ainda frescas que tinhas colhido no ao crepúsculo de doméstica floresta
no microcosmos das tuas mãos circulava a brisa de um beijo imperceptível
nessa subtileza dos afectos e da ausência aprendia-se o florir efémero de um sorriso
reabria-se uma antiga fenda nessa parede inexpugnável da idade da indiferença
adensar-se-ia o mistério se o peixe esquivo não esboçasse uma brevíssima carícia
na semi aberta concha de uma solidão impenetrável depois que foste a mãe distraída
foste no início da noite de anteontem o vulto de mãe inconsolável logo que te chegaram
céleres as notícias de Paris.
Lisboa, 15 de Novembro de 2015
Carlos Vieira