domingo, 27 de dezembro de 2015

Versos a partir de um beco sem saída


No beco da sua vida
há o rapaz
e uma rapariga
oscilam
entre não querer
voltar para trás
e não haver saída
entre a entrega ao fugaz
à voracidade do beijo
ou à iminência de briga
vítimas acidentais
da dança macabra
do sem tempo
entre empedernidos
pela lâmina
da eternidade
e adormecidos
pelo solfejo do vento
que nada muda
interlúdio bélico
e guerra fria
apenas interrompidos
por sarcasmo cínico
na penumbra
da ausência
Lisboa, 8 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Vários tons de cinzento


Enrolado à janela
neste pequeno quarto de hotel
com vista para a catedral
de Eindhoven
deixo os deuses
e demónios descansados
neste primeiro dia de Dezembro
observo a chuva miudinha cinzenta
e o céu cinzento
arquitectura moderna e cinzenta
com muito metal e vidro
os homens apressados e cinzentos
eu sou um peixe de todas as cores
que ninguém nota
vantagens dos cinzentos países do norte
passarmos ainda mais despercebidos
exulto neste aquário
sem mágoas para afogar
sem golpe de asa
vivendo epifenómenos
enganando a burocracia cinzenta
não há nada
como pequenas
estadias no estrangeiro
para nos distanciarmos
do cinzento
de nós próprios
e nos tornarmos
camaleões
dos gestos subtis
cinzentos.
Eindhoven, 1 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Faço um poema...

faço um poema
de serenidade bovina
interrompida
pelo eco do chocalho
em equilíbrio na ravina
Lisboa, 1 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Mulher com três caniches debaixo das palmeiras


Saio da garagem e no halo de luz que o portão oferece, na sua lenta ascensão, no jardim de fronte erguia-se uma mulher de meia-idade, de pé, nos seus cerca de 1,80 de altura de glamour, elegância e óculos escuros.
Não posso jurar que era loura ou se foram os raios de sol que me encadearam. Arrastavam-na pela trela, três caniches que iam à sua frente como se fossem batedores. Percebi o olhar insinuante, nele um fulgir de sensualidade, outras vezes, um prelúdio de sono, o que fazia sentido pois era meio-dia.
Pergunto-me como pude ver tudo isto num relance e com a mão no volante? Passei por ela, o mais devagar que me era permitido por lei, esfreguei os olhos ainda incrédulo. A centenas de metros dali voltei para trás, queria ver melhor se era um sonho ou visão, tocar-lhe não ousaria.
Cheguei de novo ao local da cena e afinal já tinha desaparecido, escapuliu-se, nem sombra, só havia deserta a pequena esplanada e impávidos, os bancos verdes do jardim.
A explicação mais consistente é que era uma mulher que só tinha existido como tantas outras, nas sessões de cinema da meia-noite do Quarteto, no celuloide dos primeiros filmes americanos, dos anos cinquenta, agora recuperados e pintados a cores pastel e no entanto, mudos como eu tinha ficado.
Tratou-se pois e isso é que fica para a posterioridade, de uma aparição cinematográfica debaixo das palmeiras para nos salvar da rotina, algo de tropical, será que esta também provoca alucinações, seria um milagre, pura tentação, pareceu-me excessivamente teatral mas deixa-me ainda, esta agradável ilusão de poder ter uma diva por vizinha, criada a partir do nada e da câmara escura da minha garagem.
Lisboa, 30 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Este sopro...

este sopro
frio por dentro
das flautas dos ossos
descarnados de sonhos
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Lisboa limpa...

Lisboa limpa
de pedra pomes iluminada
banhada pelo marulhar
da tristeza sóbria
do rio
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema dos homens que não partem e dos que nunca regressam


Neste pequeno refúgio na margem do rio
tiro os sapatos e deixo-os ir na corrente
tenho sonhos de homens descalços
com os pés na terra
e daqueles que sonham
andar sobre as águas
de tantos que morrem calçados
dos que não tem terra nem sapatos
que nunca verão o mar
vidas de naufrágio afogados na dor
sem visto nem passaporte
aqui estou eu marinheiro de água doce
na margem do rio onde os homens ao partir
apenas morrem um pouco.
Lisboa, 22 de Novembro de 2015
Carlos Vieira