domingo, 27 de dezembro de 2015

Faço um poema...

faço um poema
de serenidade bovina
interrompida
pelo eco do chocalho
em equilíbrio na ravina
Lisboa, 1 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Mulher com três caniches debaixo das palmeiras


Saio da garagem e no halo de luz que o portão oferece, na sua lenta ascensão, no jardim de fronte erguia-se uma mulher de meia-idade, de pé, nos seus cerca de 1,80 de altura de glamour, elegância e óculos escuros.
Não posso jurar que era loura ou se foram os raios de sol que me encadearam. Arrastavam-na pela trela, três caniches que iam à sua frente como se fossem batedores. Percebi o olhar insinuante, nele um fulgir de sensualidade, outras vezes, um prelúdio de sono, o que fazia sentido pois era meio-dia.
Pergunto-me como pude ver tudo isto num relance e com a mão no volante? Passei por ela, o mais devagar que me era permitido por lei, esfreguei os olhos ainda incrédulo. A centenas de metros dali voltei para trás, queria ver melhor se era um sonho ou visão, tocar-lhe não ousaria.
Cheguei de novo ao local da cena e afinal já tinha desaparecido, escapuliu-se, nem sombra, só havia deserta a pequena esplanada e impávidos, os bancos verdes do jardim.
A explicação mais consistente é que era uma mulher que só tinha existido como tantas outras, nas sessões de cinema da meia-noite do Quarteto, no celuloide dos primeiros filmes americanos, dos anos cinquenta, agora recuperados e pintados a cores pastel e no entanto, mudos como eu tinha ficado.
Tratou-se pois e isso é que fica para a posterioridade, de uma aparição cinematográfica debaixo das palmeiras para nos salvar da rotina, algo de tropical, será que esta também provoca alucinações, seria um milagre, pura tentação, pareceu-me excessivamente teatral mas deixa-me ainda, esta agradável ilusão de poder ter uma diva por vizinha, criada a partir do nada e da câmara escura da minha garagem.
Lisboa, 30 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Este sopro...

este sopro
frio por dentro
das flautas dos ossos
descarnados de sonhos
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Lisboa limpa...

Lisboa limpa
de pedra pomes iluminada
banhada pelo marulhar
da tristeza sóbria
do rio
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema dos homens que não partem e dos que nunca regressam


Neste pequeno refúgio na margem do rio
tiro os sapatos e deixo-os ir na corrente
tenho sonhos de homens descalços
com os pés na terra
e daqueles que sonham
andar sobre as águas
de tantos que morrem calçados
dos que não tem terra nem sapatos
que nunca verão o mar
vidas de naufrágio afogados na dor
sem visto nem passaporte
aqui estou eu marinheiro de água doce
na margem do rio onde os homens ao partir
apenas morrem um pouco.
Lisboa, 22 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Instantâneos de Lisboa



I

Da torre 
já não parte ninguém
nem ninguém de saudade morre

nem nas masmorras
sem esperança os homens esperam de pé
a mudança da maré

matriarca resignada às mágoas entre ameias
a obervar as pontes no cruzar das águas
desce por vezes ao Tejo a olear os pés

II
os navios cruzeiros
passam com seu vagares sobranceiros
em avanço paquidérmico

tem mil olhares hexagonais de coleópteros
a devorarem paisagens e a enjoarem milhas
e panorâmicas imagens

III
as gaivotas passeiam
não se comprometem muito empertigadas
muito senhoras de si e de bico calado

as gaivotas fogem das tempestades
deambulam debaixo dos pinheiros mansos
vacas raquitícas a tosar a relva

IV
nós os turistas somos uns fingidores
equilibramos a balança de transacções
convencidos de nós mesmos

aos turistas basta-lhe
um fim de semana para obterem
um salvo conduto para a eternidade

os turistas resistentes da liberdade de circulação
disparam as suas máquinas reflex
de 24 megapíxeis

V

a todo o comprimento
das vidas que vagueiam nas margens temos o rio
e as bicicletas em contra-corrente

o rio e os seus mistérios submersos
o que não conta e tudo aquilo
que mais cedo ou mais tarde virá à superfície

o rio com raiz
na libertação das entranhas da terra
e de sonhos desfeitos no refluxo da foz

também o rio esconde no seu leito
algo de inconfessável e no remoinho
uma prosaica falta de ar

depois por último
“but not the least" temos este rio vivo
no dia da morte do Rio Doce

Lisboa, 5 de Novembro de 2015
Carlos Vieira



Temperamento


Sem te dares conta
espreito o teu gesto
impressionantemente
esbelto e complexo
a pairar sobre a simplicidade
dos legumes
a tua alegria tranquila
a afagar os vegetais
que seleciona
a brincar com as porções
de tempero
e no final
sempre me surpreendes
no inesperado voo
em que me estendes
a pequena colher de pau
acompanhada
pela fórmula mágica.
“- Vê, se está bem de sal!”
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira