domingo, 27 de dezembro de 2015

Este sopro...

este sopro
frio por dentro
das flautas dos ossos
descarnados de sonhos
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Lisboa limpa...

Lisboa limpa
de pedra pomes iluminada
banhada pelo marulhar
da tristeza sóbria
do rio
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema dos homens que não partem e dos que nunca regressam


Neste pequeno refúgio na margem do rio
tiro os sapatos e deixo-os ir na corrente
tenho sonhos de homens descalços
com os pés na terra
e daqueles que sonham
andar sobre as águas
de tantos que morrem calçados
dos que não tem terra nem sapatos
que nunca verão o mar
vidas de naufrágio afogados na dor
sem visto nem passaporte
aqui estou eu marinheiro de água doce
na margem do rio onde os homens ao partir
apenas morrem um pouco.
Lisboa, 22 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Instantâneos de Lisboa



I

Da torre 
já não parte ninguém
nem ninguém de saudade morre

nem nas masmorras
sem esperança os homens esperam de pé
a mudança da maré

matriarca resignada às mágoas entre ameias
a obervar as pontes no cruzar das águas
desce por vezes ao Tejo a olear os pés

II
os navios cruzeiros
passam com seu vagares sobranceiros
em avanço paquidérmico

tem mil olhares hexagonais de coleópteros
a devorarem paisagens e a enjoarem milhas
e panorâmicas imagens

III
as gaivotas passeiam
não se comprometem muito empertigadas
muito senhoras de si e de bico calado

as gaivotas fogem das tempestades
deambulam debaixo dos pinheiros mansos
vacas raquitícas a tosar a relva

IV
nós os turistas somos uns fingidores
equilibramos a balança de transacções
convencidos de nós mesmos

aos turistas basta-lhe
um fim de semana para obterem
um salvo conduto para a eternidade

os turistas resistentes da liberdade de circulação
disparam as suas máquinas reflex
de 24 megapíxeis

V

a todo o comprimento
das vidas que vagueiam nas margens temos o rio
e as bicicletas em contra-corrente

o rio e os seus mistérios submersos
o que não conta e tudo aquilo
que mais cedo ou mais tarde virá à superfície

o rio com raiz
na libertação das entranhas da terra
e de sonhos desfeitos no refluxo da foz

também o rio esconde no seu leito
algo de inconfessável e no remoinho
uma prosaica falta de ar

depois por último
“but not the least" temos este rio vivo
no dia da morte do Rio Doce

Lisboa, 5 de Novembro de 2015
Carlos Vieira



Temperamento


Sem te dares conta
espreito o teu gesto
impressionantemente
esbelto e complexo
a pairar sobre a simplicidade
dos legumes
a tua alegria tranquila
a afagar os vegetais
que seleciona
a brincar com as porções
de tempero
e no final
sempre me surpreendes
no inesperado voo
em que me estendes
a pequena colher de pau
acompanhada
pela fórmula mágica.
“- Vê, se está bem de sal!”
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

O Bule

O bule
de asa altivo
na sua pose aristocrática
entre chávenas e scones
quem diria que ferve 
em pouca água
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Fita-me...

fita-me
o grande olho
da máquina de lavar roupa
depois fica embaciado
raso de água e regurgita
eu, eu ando às voltas
pela noite dentro
em busca dos pensamentos
mais enxutos
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira