sábado, 3 de outubro de 2015

Os arbustos do crepúsculo...

os arbustos do crepúsculo
estremecem de permeio refulge
a cauda de fogo da raposa

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



DECADÊNCIA DAS PALAVRAS

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem
Nem luzes luzes quero dizer
Nunca coisa alguma
Mais nada
Nunca mais”.
Samuel Beckett


Emboscado
no desencanto
e na culpa
do desencontro
espero-lhe
as palavras.
Espero as palavras
as certas
as setas
do sacrifício
as da dor
pacientes
com clarividência
a palavra chave
que nos salva.
As palavras
na sua inteira exactidão
impertinente
bichos desconfiados
furtivos
sôfregas de ternura
num amedrontamento
ancestral.
As palavras
mo timbre
daquela voz
variações
de breves reflexos
avistamentos
despojadas
amparadas.
As palavras
destroços
na corrente
de um caderno de apontamentos
de cor
branco sujo
que escorreram leitosas
de uma qualquer lua
lacrimejante.
Palavras
a que retiram a substância
de permeio
a consistência
dos homens
que dão o dito
por não dito
e dão significado
ao tempo.
Palavras
bofetadas sem mão
de luva branca
ganindo
aos astros que do alto
nos cercam e nos espiam
neste imenso deserto
campo de concentração.
Palavras
cobertor
na noite que arrefece
o nosso sangue frio
e o nosso sangue quente.
faltam-nos
as palavras
o discurso
o directo
ko.
Aos poucos também
nós e a lua e as palavras
desistimos
somos ocupados
pelo vazio
exaustos
deitamos-nos
na mesma cama
que fizemos
e naquela outra
que nos foram fazendo.
Palavras
que se aconchegam
na repugnante
complacência
dos que afirmavam
a pés juntos
que estavam connosco
juras de fidelidade
e nesse concubinato
concupiscente
somos em silêncio
cúmplices
da voraz ditadura
da imagem e do ruído.
Assistimos
calados
ao declínio
do valor da palavra
das inflexões e das pausas
da sugestão
do que fica por dizer
das conversas
que são como as cerejas
das histórias
onde nascem histórias
conformados
ao peço palavra
e ao tenho dito.
Olho porém
para as folhas
e para as aves
que se agitam
no cume das faias
como se fossem
mãos e gritos
que sobem a pulso
as árvores da vida.
Faltam-me
as palavras
para descrever
aquelas da coragem
e da esperança
que sobem
aqueles troncos
prateados
então calo-me
e curvo-me
por esta ordem
está tudo dito.
Lisboa. 30 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Outra história trágico maritíma


Na sua busca desesperada
por uma qualquer Atlântida
encontraram-na
no Mar Mediterrâneo
improváveis marinheiros
sem cantos de sereia
que de ventos
conheciam o siroco
os do corredor de Wakhan
e do Cabo das Agulhas
fustigando
os panos das tendas
fizeram-de ao mar
e de ondas conheciam
as dunas de areia
do sal as lágrimas do medo
e astrolábios de fome
algures a umas centenas
de metros de profundidade
no rumo para Lampedusa
podemos reencontrar
a cidade dos anjos
da ingenuidade
uma multidão
de corpos dos náufragos
sírios afegãos somalis
habitam outros abismos
esta Atlântida necrópole
de um presente
redescoberto
nos abraços de afogados
cadáveres âncoras
que nos prendem
a uma nau sem rumo
à obscura
superficialidade
da cidade sonhada
para nós mesmo.
Lisboa, 27 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido

O pano da sua tenda...

O pano da sua tenda
côa o luar
e a primeira luz da madrugada
tão fino é o pano
e são suaves as arestas
que convocam a liberdade
dos que fogem
desesperamente.

Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira



Os seus olhos de fera encurralada...

os seus olhos de fera encurralada
de atónito refugiado
marejados de rubricas e carimbos
e de arame farpado
Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira






Foto de Muhammed Muheisen

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Bailado minimal das trevas à luz


Despes 
o manto da noite 
ajaezado de estrelas
pela luz do teu corpo
encadeado
e nele aflito
me apago
a ele me entrego
despojado
ao teus pés
depois renasço
e regresso à vida
acredito
no rito do rio
em ânsias de foz
pelo tactear
dos teus dedos
e os vestígio
das unhas
pelo imaculado
marfim
dos teus dentes
que mordem
pelo arfar
reconhecido
dos teus lábios
de onde inaudito
irrompe
um insulto
de raiva e de desejo
um grito
de combate
outro de misericórdia.

Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Exposição de Pompeia: fresco de um casal fazendo amor da Casa de Cecilio Giocondo iem Pompeii



Eutanásia ou boa morte



Regressas
ao local do crime
aos teus aposentos
á grande altura do pé direito
e à consonância
de uma tarde de Outono
à contemplação
da ausência
depois do tule
dos cortinados
onde te destruíste
de tanto amares
em silêncio
regressas
a essa obscura antecâmara
da morte
em que foste autor
inevitável
vitima colateral
de um amor maior
porque de boas intensões
está o Inferno cheio
és o principal suspeito
no mínimo por instigação
por exposição ao abandono
regressas
para teu sossego
após prescrição
ao impossível julgamento
e inútil punição
verificas o móbil
o refúgio
da sua religiosidade
não tens medo
diga-se
em abono da verdade
que também
não tens coragem
apercebes-te ainda
dos vestígios subtis
dos detalhes
que escaparam
à minúcia proficiente
do investigador
fazes a reconstituição
buscas a paz
contigo próprio
constatas
da sua impossibilidade
finges-te de morto
vives nessa calma aparente
do inconseguimento
daquele amor
regressas
a todos os casos
de estudo
 ás mortes inexplicáveis
aos crimes perfeitos
sabendo que a tua existência
será para sempre
o teu castigo
recordas
das palavras repetidas
implorando
em sofrimento
tantas vezes
aquela última visão
das mãos lívidas
da perda
da gerandeza
no piedosos momento
em que cedeste
e te abandonaste
ao gesto fatal
enquanto tresloucado
na gaiola
do teu peito
um pássaro a esvoaçar
recordas
o eco dos teus passos
apressados
que fugiam
desesperadamente
às garras
de um silêncio opaco
definitivo
sem culpa
e sem expiação.

Lisboa, 25 de Setembro de 2015
Carlos Vieira