sábado, 10 de maio de 2014

Madrigal da ausência



quanto mais
me afasto
do ruído
do teu corpo nu
mais oiço 
no rumor
do sangue
a tua voz
o teu nome

também
percorro
o istmo
do olhar
que calaste

que interessa
se o vagar
do gesto
pode ser
a brisa
que agora
me acaricia

é certo
que se pudesse
beijar
teus lábios
poderia estancar
o cinzel
de fogo eterno
que morde
por debaixo
da pele

e cada
um de nós
apátridas
desses
astros de carne
onde a alegria
se demora
por si só
se extinguiria

Lisboa10 de Maio de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 8 de maio de 2014

As meninas de Chibok



as meninas 
de uma escola católica
de Chibok
foram sequestradas
quase há um mês
este é o estádio
da desumanidade
a que chegámos

as meninas de qualquer
Chibok
de hoje ou de ontem
como as de qualquer religião 
vão ser vendidas
escravas para casar
ou não
estas serão as mulheres
que nunca foram meninas

as meninas de Chibok
eram 276 
e levaram a escola inteira
para aprenderem 
a mais dura lição 
da vida e da morte

as meninas de Chibok
algures em África
223 meninas ainda
respiram?
escutamos o murmúrio
das suas vozes?
os seus olhos
amedrontados 
esperam
pela mãos dos homens
e de Deus
e que delas se condoam
os seus algozes

as meninas de Chibok
esperam que nós
os que tiveram 
a sorte de não terem vida 
com sabor a morte
façam tudo
que lhe faça devolver
um pequeno
brilho no olhar

as meninas de Chibok
são também
as nossas meninas
que há tantos dias
não dormem 
lá em casa
que não nos fazem 
sorrir ou sonhar
meninas 
que muitos luas depois
gostaríamos 
que fossem mulheres

Lisboa, 8 de Maio de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 7 de maio de 2014

Fui à peixaria...

Fui à peixaria
saí de lá a ouvir
o murmúrio das ondas
a desmaiar no areal 
impregnado
de prata e sal
e nas guelras
mais um grito
sufocado.

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

No mercado...

no mercado
de cornos no ar
caracóis aos montes
sonham as hastes
das ervas
pelos olivais
pergunto-me
se se alguma vez
se terão apercebido
do perfume
dos oregãos

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Foi pela charneca...

foi pela charneca
e saltou para o outro
lado do mundo
do muro
colheu
pequenos molhos
de espargos selvagens
e fechou os olhos
definitivamente

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Memória do aroma...

memória do aroma
da salsa e dos coentros
esse princípio da eternidade
nas tuas mãos

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

os pratos da balança

os pratos da balança
primeiro pesam o tempo
entram depois os frutos 
na dança perante 
a inquietação 
exacerbada 
do ponteiro

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira