sábado, 1 de março de 2014

Fantasia II


Pudesse eu saber
a senha
que me dá acesso 
ao teu adormecido
refúgio
que permitisse
evadir-me
desta floresta
onde os animais
me devoram
a sombra
e a ti a luz
te consome.

Pudessem
os meus lábios
contar-te
o que pudemos fazer
na casa da colina
inclinados na bruma
afogueados de pássaros
e de desejo
perigosamente
ignorando que pisamos
os supostamente
inacessíveis
territórios
da eternidade.

Se eu pudesse
despertar-te
e deixar de ser
apenas uma pedra dorida
sem vida
à tua beira
eu seria tão duro
tão sólido
e presente
que tu docemente
murmurarias
no búzio do ouvido:

"- Entra pedra de fogo
pelas minhas entranhas,
entra, para que
daqui para frente
eu possa ser
o vulcão eloquente
que na tua vida
entrou para sempre
em erupção."

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira





                                            "A visita de Vénus a Vulcano" François Boucher

Fantasia I

Foste tu 
pela manhã
nos teus lábios
o poema que escrevi
ave que contorna inebriada
a planície em chamas
e que sabe de olhos fechados
onde falta extinguir
os nós da solidão
a inquieta tristeza
da ausência
povoamos o silêncio
de esquissos de palavras
como se fossem animais em fuga
pelo rumor 
que o desespero 
dos nossos corpos a enlouquecer
fazem temer
os meus dedos 
acendem em ti ao passar 
demónios esquecidos 
e no teu olhar 
paisagens nunca vistas
e que nem ouvi falar
levas-me contigo
a mergulhar nesse abismo
que há dentro de ti
nesse jardim
onde a tua sofreguidão
alimenta do omnipresente
perfume 
dos meus monstros formidáveis
inacreditáveis fantasia.

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira

"Eros e Psiquê, do seu amor nasceu Volúpia"



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O eterno retorno

Tenta desbravar
a vereda das memórias
e aí encontrar
translúcidas
as amoras roxas
e assim
voltar a olhar-te
a partir
da penumbra
do silvado
ávido
dos teus lábios
ocultando
o suplício dos espinhos
denunciado
pelo melro
de negro flamejante
que surpreso
alçava
voo estridente
enquanto
a sua mão pousava
no teu seio
ateando ao seu corpo
o desassossego
e ao mesmo tempo
mansa

sombra do caminho
artífice do tempo
que sem saber
feito arbusto
os acompanha.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

"Promenade" de Marc Chagall

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Li-te...

Li-te
tranquila e nua
se te chamar não respondas

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Vi-te lua...

Vi-te
lua côncava
ao sabor indecifrável das ondas

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Os cavalos também se abatem


Cavalo triste
a trote
que bebes a linha
de água,
depois 
já no limite
preso pela rédea 
ao marco geodésico
que lambe o vento
rumina
o pensamento
inútil
que o homem
só e destemido
tinha deixado
a vegetar
no cume agreste 
das montanhas
foi relatado
que esse mesmo animal
foi visto a saltar 
a cerca
contornando a encosta
para ver onde o sol
se esconde
era opinião
generalizada
que este comportamento
era fruto da solidão 
do homem
da ousadia do pensamento
que o levara
ao cume das montanhas
era agora espora
que picava
a barriga da besta
e que o mesmo
desferia a despropósito
coices
como se fosse
um cavalo louco.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Vertigem de vértice


Vértice
de onde diverge 
a luz

onde 
o dedo meticuloso
perdeu a unha

o espanto
de um olhar insistente
tudo esquece

o silêncio inventa
um precário 
pilar de sustentação

ali próximo
a esquina da sombra
é cúmplice de alta
traição.


Lisboa, 24 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira