terça-feira, 28 de janeiro de 2014

s de solidão

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Solidão é uma palavra obscena. É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo. Medo – um homem pode dar por si  a cometer crimes sem grandeza. Assassinar, por exemplo. Princípios superlativamente adolescentes. Prefiro a decomposição da pele, uma taberna entre cabeços, o petróleo de candeeiros que projectem sombras imóveis, recantos, pequenos estrumes. E já agora, se me dão licença,  um frio de certo modo inculto a bater no vidro da janela, nos ossos, talvez nos ossos quando se acaba o dinheiro. Mas é humano, bárbaro e humano. Uma espécie de sinfonia entregue ao poder de cada qual, arrecadações da alma, mansas. E dardejante o círculo azul de um copo de aguardente, aguardente, imagine-se, a saltar dentro de si, a subir, a subir, e um homem a dizer, imortal: senta-te, copo. Bebe comigo. E ele senta-se e bebe. É remoto, quase no outro lado das trevas. Mas magnifico, oh, tão magnífico. E ainda há quem me fale de escritores, romances, e até de revoluções. Balelas. Quero uma nora que pare o mundo rente ao ao fogo do inferno. E a água detida, doente, de preferência afogada pela mão de Deus a arder. Nada de riscos. Eis do que falo. Precário, inviolado, entregue ao soalho.

Poesia em hora de ponta



O cidadão abriu
o vidro do carro
e atirou o poema
pela rua fora,
o vento levou-o,
os condutores
os piões, os polícias
de trânsito,
estavam indignados,
não se sabe
se pela ousadia,
falta de respeito,
se ignorando
tudo isso,
o lixo
que pode ser
ou era a poesia.

Lisboa, 28 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

El silencio

Poema El silencio

de José Emilio Pacheco, poeta mexicano que morreu ontem 27 de Janeiro de 2014



La silenciosa noche. Aquí en el bosque
no distingo rumores, no, de ninguna especie.
Los gusanos trabajan.
Los pájaros de presa hacen lo suyo
(seguramente).
Pero no escucho nada.
Sólo el silencio que da miedo. Tan raro,
tan raro, tan escaso se ha vuelto en este mundo
que ya nadie se acuerda como suena,
ya nadie quiere
estar consigo mismo un instante.
Mañana
dejaremos de nuevo la verdadera vida para
mañana.
No asco de ser ni pesadumbre de estar vivo:
extrañeza de hallarse aquí y ahora en esta hora tan muda.
Silencio en este bosque, en esta casa
a la mitad del bosque.
¿Se habrá acabado el mundo?

São 7h30 da manhã...

São 7h30 da manhã
passo junto ao novo circuito de manutenção
de Alfornelos
sentado no banco dos abdominais
um homem de meio idade
a pensar na vida
em frente 
o Cemitério de Benfica.

Lisboa, 28 de Janeiro de 2014 
Carlos Vieira

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Devia ter sete anos...

Devia ter sete anos
de vez em quando
agarrava-me às grades
e espreitava os bichos,
a única diferença
para aqueles é que 
para eles não era só
de vez em quando.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

Sempre me intrigou...

Sempre me intrigou
a competência
com que os elefantes escolhiam
moedas escuras e as claras
e não houvesse pelo menos um
que reagisse em contracorrente
que ao tocar o sino 
quebrasse o ciclo 
ultrapassando o fosso da pobreza.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



Naquele tempo...

Naquele tempo
saíam com os elefantes
e iam passear à noite
em fila indiana
na Estrada de Benfica
não sei o que mais
me espantava
se a admirável grandeza
dos animais
dos tratadores
ou a estranheza
da sua marcha tranquila
pela cidade.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira