domingo, 26 de janeiro de 2014

este choro que arranha e lava

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1
Tirava os quadros da parede. Voltava a pendura-los. Olhava. Mas quem lhe diz que visse. Repetia a mesma faixa do disco. Escutava. Mas quem lhe diz que ouvisse. Queria chegar a uma conclusão, isto podemos afirmar sem dúvida. Mas quem lhe diz que houvese. E quem lhe diz que fizesse diferença haver ou não haver. E quem lhe diz que todo o caminho não fosse exactamente não chegar. Ninguém lhe diz. De facto, ninguém lhe diz.

2
Era assim que agora saiam as palavras. Como pedras das mãos espantadas. Como gritos, como facas subitamente desferidas contra a página onde se calavam. Longe ia o tempo dos ofícios desesperados. Longe ia o tempo também das crenças iluminadas. As palavras, essas que sem querer continuava a escrever, já não sabia procura-las, chamar por elas, vagarosamente prendê-las no seu redil. E era sem que o esperasse mais feliz assim. Lábios com a forma da sua boca fechada.

3
Toda a vida tentara entender a vida, vivê-la como ideia que pudesse pensar. Só agora percebia que a vida era outra realidade. Uma brisa inesperada na face. Uma areia encravada sob a pálpebra. Nada que alguma vez tivesse pensado. Esta lágrima. Este choro que arranha e lava.


jorge roque
telhados de vidro nr. 12
averno
maio 2009



precária perda



saíste agora
para a rua,
eu fiquei
em casa
a escrever
este poema
do que ficou de ti
e daquilo que perdi,
como se fosse 
um inventário,
incrédulo
de que um dia
possa ser
definitivo

Lisboa, 26 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

O horror vacui ( Horror ao vazio)



São mínimos 
os afastamentos
vamos habituando-nos
à penumbra
vai-nos bastando
a aparente
cumplicidade
da mão 
que se estende
de dentro da ausência.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Cara ou coroa!



" - É cara ou coroa!"
A moeda de um euro
subiu, brilhou e caiu,
por coincidência
desapareceu
num buraco
de toupeira
que ao ver 
a moeda,
não se sabe 
com cara ficou
e fará dela agora
coroa da sua pobreza.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Assoam-se-me...

Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração
sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.


Luís Miguel Nava

Uma tangente voltaica...

Uma tangente voltaica.
Porque o martelo
é uma entoação
sobre o fogo.

plataforma logística

plataforma logística

escrever um 
poema como se trabalhasse
numa plataforma 
as gruas a estenderem os seus 
grandes braços de um amor excessivo
os estivadores de fatos de macaco azul
mantidos a alguma distância
nada de sermos contaminados pelo trabalho
depositamos os contentores 
como se fossem estrofes sobrepostas
e olhamos para eles brancos, azuis e amarelo torrado
carregados de substância
prenhes de distância
a tresandarem do nosso enorme ego
depois com as luvas e as máscaras
e botas cardadas introduzimos-nos na realidade
sentimos o seu cheiro nauseabundo
vamos acompanhar os técnicos 
na verificaçao de alguns poemas 
que não cumprem as cerificações
se estão dentro do prazo de validade
sobretudo aqueles 
que são feitos com produtos perecíveis
o amor, a solidão, a infância
não aguentam muito
a seguir com o monta cargas
em silêncio desviamos paletes
de versos que se vendem com mais facilidade
no mercado paralelo
gosto deste movimento das palavras
menos escolhidas
de português vernáculo
e da poesia 
a cheirar óleo queimado e peixe podre 
a um gesto sucinto 
de amor sem abrigo
que coincide com madrugada 
que irrompe entre os silos e a maré vazia 
e a última ronda da noite

Lisboa, 26 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira