domingo, 19 de janeiro de 2014

No descampado ...

No descampado sem vida
um pente de mulher
do tempo dos fenos.

Ihara Saikaku

As lágrimas...

As lágrimas crepitam
apagando
as brasas

Matsuo Bashô

sábado, 18 de janeiro de 2014

Silêncio...



                                                           José Tolentino Mendonça

Leonard Cohen - Joan of Arc




Joana d'Arc
Agora as chamas seguem Joana d’Arc
que vem cavalgando pela noite escura
sem lua que lhe acenda a armadura,
sem homens que a guiem na névoa sombria.
Disse “Estou cansada da guerra,
queria o tipo de trabalho que tinha antes,
um vestido de casamento ou algo branco
para cobrir a minha ânsia exasperada.”
“Que bom ouvir-te falar assim.
Tenho-te visto cavalgar dia após dia
e algo em mim anseia por conquistar
uma heroína tão fria e solitária.
“E quem és tu?”perguntou ríspida
a quem lhe falava sob o fumo.
“Sou o fogo”, respondeu ele,
“E amo a tua solidão, o teu orgulho.”
“Então, ó fogo, arrefece o teu corpo,
vou dar-te o meu para abraçares.”
E dizendo isto, mergulhou nele
para ser sua, a sua única noiva.
E no mais fundo do seu coração ardente,
ele tomou as cinzas de Joana d’Arc,
e bem alto, acima dos convidados da boda,
pendurou os restos do vestido de noiva.
Foi no mais fundo do seu coração ardente
que ele tomou as cinzas de Joana d’Arc,
e então ela compreendeu que se ele era fogo,
oh, então ela tinha de ser lenha.
Vi-a estremecer, vi-a chorar,
vi a glória no seu olhar.
Eu próprio anseio pelo amor e pela luz,
mas tem de vir tão cruel, e oh tão fulgurante?
Leonard Cohen (n. 1934), Canada, tradução de Soledade Santos

Pasolini e gli italiani -



A inteligência nunca terá importância, nunca
na consciência desta opinião pública. Nem mesmo
sobre sangue dos campos de concentração, obterás
de um dos milhões de almas do nosso país
um juízo limpo, totalmente indignado:
toda a ideia é irreal, irreal toda a paixão,
deste povo já dissociado
dos séculos, cuja suave sageza
lhe serve para viver e nunca o libertou.
Mostrar o meu rosto, a minha magreza,
levantar a minha voz sozinha e pueril
não tem mais sentido: a cobardia habitua-se
a ver morrer os outros do modo mais atroz,
com a mais estranha indiferença.
Eu morro, e também isso me ofende.
Pier Paolo Pasolini, Itália (1922-1975), tradução de Nuno Dempster.

BECHEROVKA





Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar "o que fazia".

Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha "obra".

Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.

Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.


A flor dos terramotosAverno, Lisboa, 2005.

NAS TÍLIAS O SUSSURRO DAS ABELHAS





A brisa ia direita às tílias
onde as abelhas se enchiam de pólen.
Iam e vinham numa orgia
de bater de asas.
Na grande áurea tarde
sempre deixavam cair alguma poalha.
Falo das abelhas e do perfume das tílias
como se fosse do sabor de um livro
suspendendo-me todo.

Bestiário trasmontano e alto-duriense [de Terra adagio cantabile], org. de A. M. Pires Cabral, Grémio Literário Vila-Realense, Vila Real, 2013.