quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Dou à memória...

«Dou à memória uma razão para que exerça a sua condição de arquivo de existências, reconstituindo-te, recompondo-nos, voltando a colocar a cabeça em cima do teu corpo nu.».


O Amor é para os Parvos, Manuel Jorge Marmelo, Quetzal, 2011

UM GATO PARTIU À AVENTURA





As palavras de vidro que tu depões em teus seios, para me ofereceres, raspam estridentes na camada inacessível dos meus olhos;
Caem e eu sonho para espalhar plumas nos espaços;
Trago na mão esquerda, hermética, fechada duramente, as delicadas linhas epidérmicas,
Leio nesse rendilhado de sensações o roteiro da minha viagem livre, o meu voo solitário, que eu inicio saltando dos telhados para as janelas;
É na abstracção hipnótica do rosa íris que eu te vejo acompanhar a estranha aventura dum albatroz,
E é ao cair da noite que eu aceno longamente os meus braços;
É na harmoniosa vibração azul que eu transmito o Sol vermelho do poente e da tristeza, e , quando as minhas mãos se transformam em pérolas puras, os teus olhos gelam para serem os gigantes da noite;

Livre um gato desliza pela goteira escura da cidade,
livre uma pequena ilha nasce no ponto ignorado do Oceano,
livres as ondas escorregam na superfície marinha,
livres os pássaros e os cavalos na noite da lua encarnada,
livre eu chamo-te dos cumes das serras,
livres as ondas os cavalos e os pássaros;

Abandono a terra da ilha para viver nos abismos, nas cidades que crescem, nos beijos que enchem o vento,
E oiço a imensa máquina que esmaga o ferro da estrada construída, a cortina sedosa dos teus cabelos, eu e tu,
e vejo o cego que avança com os braços levantados para o mundo incompreensível,
e liberta os corpos visíveis: os teus lábios, os teus seios, o teu sexo; e mães batem às janelas e imploram: LAMA!,

A um canto morre em agonia o primeiro grito;

O gato parte à aventura pelos telhados, pelos vales e pelos sonhos.

(A Zunái está diagramada e em fase de revisão, ufa...)

O amor que se vive do lado de dentro



Entrou no labirinto
do seu corpo,
tirou o casaco, a gravata, o cinto
e pendurou-os na grelha costal do lado direito,
numa costela verdadeira,
depois pela primeira vez
sentiu o seu coração esmagado naquele peito.
Quanto era por vezes exíguo
e outras vasto o lugar do amor,
assim jamais encontraria
o caminho para sair dali,
quanto é tangível e sinuoso
e com defeito
do lado de dentro.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



Poetry Everywhere: "Dust" by Dorianne Laux


Dust
Someone spoke to me last night
told me the truth. Just a few words, but I recognized it.
I knew I should make myself get up,
write it down, but it was late,
and I was exhausted from working
all day in the garden, moving rocks.
Now, I remember only the flavor —
not like food, sweet or sharp.
More like fine powder, like dust.
And I wasn’t elated or frightened,
but simple rapt, aware.
That’s how it is sometimes —
God comes to your window,
all bright and black wings,
and you’re just too tired to open it.
Look at me. I’m standing on a deck
in the middle of Oregon. There are
friends inside the house. It’s not my
house, you don’t know them.
They’re drinking and singing
and playing guitars. You love
this song, remember, “Ophelia,”
Boards on the windows, mail
by the door. I’m whispering
so they won’t think I’m crazy.
They don’t know me that well.
Where are you now? I feel stupid.
I’m talking to trees, to leaves
swarming on the black air, stars
blinking in and out of heart-
shaped shadows, to the moon, half-
lit and barren, stuck like an axe
between the branches. What are you
now? Air? Mist? Dust? Light?
What? Give me something. I have
to know where to send my voice.
A direction. An object. My love, it needs
a place to rest. Say anything. I’m listening.
I’m ready to believe. Even lies, I don’t care.
Say burning bush. Say stone. They’ve
stopped singing now and I really should go.
So tell me, quickly. It’s April. I’m
on Spring Street. That’s my gray car
in the driveway. They’re laughing
and dancing. Someone’s bound
to show up soon. I’m waving.
Give me a sign if you can see me.
I’m the only one here on my knees.

~ by Dorianne Laux

Collage


A esse pássaro...



A esse pássaro que canta nas árvores
apetece-me atirar pedras,
a ver se de uma vez por todas
ele se decide por voar mais do que canta.

A esse pássaro de gaiola
apetece-me envenenar a alpista,
a ver se lhe alivio as dores
de tanto esbarrar contra as grades.

Só à águia embalsamada na taberna
da Francisca nada me apetece fazer.
Fico a olhá-la como a um espelho.
E nada me apetece fazer.



(A dança das feridas, Colecção Insónia, 2011, p. 21)


Henrique Manuel Bento Fialho

Apago cigarro após cigarro


Apago cigarro após cigarro,
a chávena ainda quente do café,
e o corpo todo à escuta.
No sono entrevi o teu olhar e
ao visitar-te, excessivamente te beijei.
Entre temor, entre comas, os lugares
que habito são apenas pontos
de esquecimento e fuga.

Tenho medo, por vezes, de estar em casa,
outras, de sair, não sei o que me persegue
ou persigo, movo-me apenas
por entre odores, escombros, e aflita
com perigos indefiníveis.

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 30