quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Música das Cores


Ao Ângelo
A pintura; às vezes, sabe ser
uma forma de música: sugere,
no fluxo imparável do acontecer,
que a vida pode não acabar. Fere
o centro de nós mesmos. Amacia
e dissolve tensões que a vida impura,
em tantos momentos, cega, nos cria.
Como a música, é boa a pintura.

Eugénio Lisboa
Matéria Intensa
Lisboa, Instituto Camões, 1999



Retrato Ardente


Habito as distâncias

Habito as distâncias
vivo dentro das distâncias

as tuas mãos, o teu rosto,
a claridade, que pelos teus olhos…
o mundo, que pelos teus olhos…
povoam as minhas distâncias.
Sabias?

Não. Ninguém sabe de ninguém os mundos
que cada um habita.

Falo-te. Nunca te disse.
em longas falas digo-te coisas tão particulares
de cada um de nós
de tudo em volta.
Das pequenas misérias diárias
dos pequenos nadas
do livro que se leu.
Do que se sente
do que se pressente
do que dói.
Das coisas diárias…

Do reparar nas coisas. A beleza das coisas.
Da harmonia do silêncio. A harmonia.
Das raízes sinuosas do afecto os inexplicáveis elos.

Tudo fica entre mim.
É quasi perfeito como diálogo, o nosso.
Que me responderias?
Que me poderias responder melhor
do que aquilo que te atribuo como resposta?

Na minha distância espero-te
sabendo que não sabendo tu que te espero
nunca virás.
É isso essencialmente a distância.
Aí preparo em cada dia especiais momentos
para a tua inexplicável chegada.

(In: Árvores de domingo. Lisboa, Livros Horizonte, 1986. Uma belíssima edição!)


Imitações


Patti Smith - Because The Night

Verdade e Mentira




Sei que há imensas coisas na história de uma família que são pura fantasia. Qualquer família. as histórias vão passando de geração em geração e a verdade vai-se perdendo. Quem conta um conto acrescenta um ponto, como se costuma dizer. Alguns talvez achem que isto significa que a verdade não consegue competir com a mentira. Mas eu cá não acredito nisso. Cá para mim, depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. Não anda a fugir de um lado para o outro e não muda com o passar do tempo. É impossível corrompê-la, assim como é impossível salgar o sal. É impossível corrompê-la porque é pura, sem adornos. É a matéria de que são feitas as nossas palavras. Já ouvi compará-la à rocha - talvez a bíblia - e não discordo dessa ideia. Mas a verdade permanecerá, mesmo quando a rocha tiver desaparecido. Tenho a certeza que certas pessoas discordam isto. Bastantes, aliás. Mas nunca cheguei a perceber em que é que nenhuma delas acredita. 

Cormac McCarthy, in 'Este País Não É para Velhos"

Viagens XIV



Na estação dos comboios é admirável
a leveza do mundo nas chegadas
e do corpo nas partidas.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira