sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Poemas são conchas...

Poemas são conchas abandonadas por animais sofredores
que nelas viveram — a beleza que resta
de uns traços da humana errância.

Casimiro de Brito

Ignorância

Estranho nada saber, nunca ter a certeza
Do que é verdadeiro, certo ou real,
Forçado então a dizer pelo menos é o que sinto
Ou Bom, é o que parece:
Alguém deve saber.

Estranho ignorar o modo como as coisas funcionam:
A sua capacidade de encontrar o que necessitam,
O seu sentido de forma, e o espalhar da semente preciso,
E a sua vontade de mudar;
Sim, é estranho,

Trazer vestido até tal conhecimento – pois a nossa carne
Cerca-nos com as suas próprias decisões –
E ainda assim gastar a vida em imprecisões,
Tanto que quando começamos a morrer
Nem fazemos a ideia do porquê.

Philip Larkin
tradução de Pedro Silva Sena

Ninguém Sabe Coisa Alguma

Philip Porque nós não sabemos, pois não? Toda a gente sabe. O que faz as coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está subjacente á anarquia da sequência dos acontecimentos, às incertezas, às contrariedades, à desunião, às irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos?Ninguém sabe, professora Roux. «Toda a gente sabe» é a invocação do lugar-comum e o inimigo da banalização da experiência, e o que se torna tão insuportável é a solenidade e a noção da autoridade que as pessoas sentem quando exprimem o lugar-comum. O que nós sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-comum, ninguém sabe coisa nenhuma. Nãopodemos saber nada. Mesmo as coisas que sabemos, não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso ainda é o que passa por saber. 

Philip Roth, in "A Mancha Humana"

A caixa negra


Não procurem a caixa negra da poesia,

não tem respostas gravadas,
está cheia de perguntas e perguntas dos sonhos
ou de um silêncio onde é penoso entrar.

Pia Tafdrup

Onde vão os passos...

Onde vão os passo que se afastam e que escuto
Longe muito longe
Estamos sós a minha sombra e eu
A noite cai

Pierre Reverdy

Quando nos Apaixonamos



Quando nos apaixonamos, ou estamos prestes a apaixonar-nos, qualquer coisinha que essa pessoa faz – se nos toca na mão ou diz que foi bom ver-nos, sem nós sabermos sequer se é verdade ou se quer dizer alguma coisa — ela levanta-nos pela alma e põe-nos a cabeça a voar, tonta de tão feliz e feliz de tão tonta. E, logo no momento seguinte, larga-nos a mão, vira a cara e espezinha-nos o coração, matando a vida e o mundo e o mundo e a vida que tínhamos imaginado para os dois. Lembro-me, quando comecei a apaixonar-me pela Maria João, da exaltação e do desespero que traziam essas importantíssimas banalidades. Lembro-me porque ainda agora as senti. Não faz sentido dizer que estou apaixonado por ela há quinze anos. Ou ontem. Ainda estou a apaixonar-me. 

Gosto mais de estar com ela a fazer as coisas mais chatas do mundo do que estar sozinho ou com qualquer outra pessoa a fazer as coisas mais divertidas. As coisas continuam a ser chatas mas é estar com ela que é divertido. Não importa onde se está ou o que se está a fazer. O que importa é estar com ela. O amor nunca fica resolvido nem se alcança. Cada pormenor é dramático. De cada um tudo depende. Não é qualquer gesto que pode ser romântico ou trágico. Todos os gestos são. Sempre. É esse o medo. É essa a novidade. É assim o amor. Nunca podemos contar com ele. É por isso que nos apaixonamos por quem nos apaixonamos. Porque é uma grande, bendita distração vivermos assim. Com tanta sorte. 



Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (14 Fev 2012)'

Não há vergonha em esquecer à noite...


(...) Não há vergonha em esquecer à noite aquilo que lembrarmos de manhã. A noite é o momento do esquecimento, da confusão, do desejo tão quente que se torna vapor! A manhã, porém, apanha-o como uma grande nuvem acima do leito. Seria estúpido não prever à noite a chuva da manhã. Se, por hipótese, me dissesses que não tens nenhum desejo a exprimir, por cansaço ou por esquecimento, ou por excesso de desejo, que leva ao esquecimento, por hipótese de retorno, dir-te-ia que não te cansasses mais, tomasses o de qualquer outro. O desejo furta-se, mas não se inventa (...) e um desejo toma-se mais facilmente que um hábito.



Bernard-Marie Koltès: Na solidão dos campos de algodão