sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

DENTRO DOS LIMITES




Habituas-te à tua forma. Às paredes construídas de paciência, à altura do tecto cheio de manchas estranhas, ao chão pegajoso; imperturbável, a tua respiração sonda o espaço e retorna, as tuas mãos acham no escuro o interruptor, os cigarros, como te movimentares, habituas-te a fumar no escuro, quem vês mais nitidamente são os teus filhos, pedalam em bicicletas de pneus furados, pegam em ferramentas sem terem ninguém que lhes ensine, atiram aos pássaros errados, raspam as faces com a tua navalha embotada. Habituas-te. Debaixo dos cobertores a tua mulher revolve-se nua, sente-la próxima, estendida, em dimensão real, tentas tocar-lhe, habituas-te a um corpo que ninguém mais toca e tu mais e mais perdido à volta dela, difícil de consolar. Habituas-te à vista como a uma história, a quem ta leu naquela altura, quase adormecido, já naquela altura, muitos anos atrás, praticamente não compreendeste o significado, tal como te esqueceste de muitas coisas e habituas-te à imagem que fabricas depois: salteadores aparecem e cantam, há um homem com uma gadanha, uma mulher numa torre, de braços abertos como se estivesse à espera de cair, no entanto a espera dela é voluntária, ri-se. Habituas-te. A que em breve, corajosamente alguém virá socorrê-la, derrotar os ladrões e dar cabo do homem com a gadanha. Habituas-te ao impulso de a meter para dentro. A ficar hesitante ao princípio, em seguida, aos teus hábitos, a uma relação com a luz sobre os lençóis, à porta de ferro, à torneira que pinga, aos buracos dos cigarros nas cortinas, aos teus posters nus que se oferecem, ao rosto omnipresente que se debruça quando escurece, ao bafo da justiça, às conversas dos outros e à música ao longe, ao facto de tudo provocar estalidos, ao desaparecer vagaroso de um passo no corredor, a ter medo habituas-te, à tua nudez completa, sémen na mão, caracol que és. A matutar habituas-te, à inutilidade da respiração contínua habituas-te, ao constante cismar habituas-te.

ESTER NAOMI PERQUIN

XXI


Todos os dias, a toda a hora, uma após outra, cruzo-me na rua com mulheres que não conheço e nunca conhecerei. Algumas são lindas, outras atraentes, outras aparentam inteligência ou outra característica mental cativante, outras ainda parecem acumular tudo isso. Se, a cada vez que tal sucede, parasse e as parasse, lhes dissesse o que penso e que indícios me fazem pensá-lo (supondo que estivessem dispostas a ouvir-me), levaria uma eternidade a percorrer um quilómetro. Concluo: a vida, esta vida, apressada e inútil, feita de correrias rumo ao vazio, foi esquiçada ao arrepio da beleza e da sua contemplação. A vida é para os brutos. Para os cegos que, como diz o provérbio, não querem ver. A vida é uma moléstia ininterrupta. Ou, se calhar, viver é outra coisa que não isto, é darmo-nos o tempo de parar na rua para dizer às mulheres por que razão são lindas.


Miguel Martins, 1 Homem Sozinho

CORRECÇÃO



Não te ocupes das vírgulas, todos esses signos
de pontuação, hífens e aspas
que marcas com tanta minúcia,
perder-se-ão, por obra do descuido
do corrector e o teu ritmo
da frase, do pensamento, da linguagem
resultará menos importante do que
esperavas ou talvez do que querias.
Tudo isso eram sonhos dourados:
não te lerão ao som da música da fala
antes ao som do estrépito do mundo.

Piotr Sommer


Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;


Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;
À minha frente ruge o Aragva.
Estou em paz e triste; há um lampejo em meus suspiros,
Meus suspiros são todos teus,
Teus, e de mais ninguém... Minha melancolia
Está insensível a angústias e apreensões,
E meu coração arde e ama mais uma vez,
Pois nada pode fazer além de amar.

Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
No mundo inteiro, nós os dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio
No outro lado, para além do espelho.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

Arseni Tarkóvski (1907 - 1989)


Disseste que se via nos olhos


Que nem um sorriso conseguia esconder. Que me vias, assim. Perdoa-me também; porque eu reparei nos teus olhos. E não esqueço gestos. Por exemplo: quando levaste a mão ao peito como se não conseguisses respirar. Ouvias esta música. Já não te recordas, eu sei. Disfarçaste. Ainda hoje me espanto com o que aguento lembrar. Por exemplo: quando chorei abraçada a ti. Foi assim que nunca mais abandonei o teu cheiro. Mas tu voltaste a dizer que se via nos olhos e eu – o tanto que tentei – só queria enganar-te. Cedi. Não sei bem o que viste. Sei que te arrastei no meu silêncio. Que me acalmou a tua respiração acelerada. Ou a tua mão no meu cabelo. Beijaste-me em prenúncio de tragédia. Não interessa agora. O que aconteceu? A memória será o meu calvário. E isso – tu sempre soubeste – vê-se nos olhos. Tomara eu sabê-lo tão bem: talvez ainda tivesse tempo de fugir.


Rafael Alberti


A cal...

A cal,
o amor
guardado para os mortos,
dissolvente perfeito
da tua solidão
descarnada
em meu peito,
a cal,
o coração.

Carlos de Oliveira



Não sei para que lado da noite me hei-de virar

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite


Carlos Alberto Machado