quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Balada da Rua Damasceno Monteiro

ardia de amor pela casa
uma confusão de silêncios ou
dizendo de outro modo
afundava-se numa líquida recordação cardíaca
ocultos pólen pólvora fósforos
a má reputação dos dedos
paixão cartografada remota
toponímia de enganos
braço a braço crescia alto
o incêndio no interior do peito
deliberado ritual de lâminas e pele
a transparente certeza
da cicatriz

mas ardia de amor pela casa soturna
silêncio dando para o saguão luz muitíssimo
extinta por sobre a larga extensão destruída
morrer, principalmente de amor, é
uma compendiosa tarefa doméstica
dentro do coração antigo
                  serei breve

(in Contra a Manhã Burra)
Miguel Manso

Benefício de inventário



Aqui estou de novo
crente,
o mesmo cedro,
o coração continua a arder em lume brando,
tu és apenas uma memória longínqua de algodão em rama
a estancar as últimas feridas,
afastando-se guilhotinada pelas persianas.

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Aviso


Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.






antonio sáez delgadotradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3verão de 1998
palha de abrantes

Os dias passam assim...

Os dias passam assim,
como direi?
— delicados.

Não há projectos de viagens,
e tratado das grandes ideologias
abandonado a um canto;
os crimes perfeitos são outonais
e esta tarde é uma estação infinita;
a cama? «oh! a cama é larga».
lá fora a árvore é verde,
o universo expande-se;
do caderno à janela, penso neles,
nos amigos.
tarde duma única visão:
ter um terraço plantado de rosas.


António S. Ribeiro, Sião

Só ela ouvia música...

Só ela ouvia música; aliás, era ela que escolhia, mentalmente, as músicas que ouvia, ouvia secretamente essas músicas. E dançava com essas músicas; dançava com os olhos, com movimentos de cabeça, com os braços. Podia estar a ouvir pessoas e estar, ao mesmo tempo, a dançar essas músicas. Dançava; às vezes, por dentro de si mesma.


Armando Baptista-Bastos

Crianças na estrada rural



«Vivem lá umas pessoas! Imaginem, não dormem! »
«E porque não?»
«Porque não se cansam.»
«E porque não?»
«Porque são malucos.»
«Os malucos não se cansam?»
«Como é que os malucos se podiam cansar!»

Franz Kafka, in "Os Contos" assírio & alvim, 2004

Incidente de trânsito



Caía na manhã serena
uma chuva molha-tolos
e sobre o pequeno veículo azul
de pneus para o ar,
pelo asfalto iam germinando
sirenes e pirilampos
a assinalar o despiste,
à entrada do túnel do Grilo
um acidente de percurso
ao romper  da madrugada,
à espera da libertação
a  rapariga serena
mas encarcerada,
enquanto sobre nós
caía a chuva.

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira