quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ave haiku LXXVII



a ave atravessa as nuvens e a seta 
vai ao seu encontro, no esplendor do orvalho
entre a erva macia são agora uma natureza morta

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Ave haiku XXLVI



Ali estava eu a ouvir o tamborilar da chuva
a ave debaixo de telha do velho pardieiro
sabia que quem voa à chuva molha-se.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Posto de gasolina



poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a
crina dum cavalo. vêm mortos de sede. julgo que se perderam
no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. neste em-
prego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do
mundo a acelerar-se pouco a pouco. quem sou eu, no entanto,
que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os
sonhos de quem passa?

- carlos de oliveira -

a sensibilidade...

"a sensibilidade é indispensável ao homem, mas torna-se temível a
partir do momento em que é aceite como um valor, como um critério
de verdade, como a justificação de um comportamento. os mais
nobres sentimentos nacionais estão prontos a justificar os piores
horrores; e, com o peito insuflado de sentimentos líricos, o homem
comete as piores baixezas em nome do sagrado amor."
(...)

- milan kundera -
(jacques e o seu amo, introdução a uma variação)

e agora, quê?



e agora quê, leitor?
sós tu e eu,
desconhecidos.
unidos por um livro
no qual não sei que procuras,
no qual eu ando perdido.

- antonio pérez morte -

Mudamos esta noite



E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias

António Reis - Poemas Quotidianos, Portugália (col. «Poetas de Hoje»), Lisboa, 1967

“Estar só é estar no Íntimo do Mundo”


Por vezes   cada objecto   se ilumina 
do que no passar é pausa íntima 
entre sons minuciosos que inclinam 
a atenção para uma cavidade mínima 
E estar assim tão breve e tão profundo 
como no silêncio de uma planta 
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice 
ou na alvura de um sono que nos dá 
a cintilante substância do sítio 
O mundo inteiro assim cabe num limbo 
e é como um eco límpido e uma folha de sombra 
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes 
E é astro imediato de um lúcido sono 
fluvial e um núbil eclipse 
em que estar só é estar no íntimo do mundo 

(António Ramos Rosa, in “Poemas Inéditos”)