quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ave haiku LXXVIII



Pego no lápis e no crepúsculo
e decalco cada tronco, cada mão de folhas
um pássaro voa para a árvore e desata a fazer gatafunhos.

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

Escrever não é falar...

" - Escrever não é falar.
- Não? Qual é a diferença?
- É exactamente o oposto. Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque já não te resta nada para dizer.
(...)
E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. "


Miguel Sousa Tavares in No teu deserto

in Comer, Orar, Amar

“As pessoas pensam que uma alma gémea é o seu encaixe perfeito, e é isso que toda a gente quer. Mas uma verdadeira alma gémea é um espelho, é a pessoa que te mostra tudo aquilo que te prende, a pessoa que te chama a atenção para que possas mudar a tua vida. Uma verdadeira alma gémea é, provavelmente, a pessoa mais importante que alguma vez conhecerás porque irá derrubar os teus muros e despertar-te à força. Mas viver com uma alma gémea para sempre? Não. Demasiado doloroso. As almas gémeas entram na nossa vida apenas para nos revelar outras camadas de nós próprios, e depois vão embora.” 

in Comer, Orar, Amar

No meu jardim - Poema de Miguel Torga

Balada da Rua Damasceno Monteiro

ardia de amor pela casa
uma confusão de silêncios ou
dizendo de outro modo
afundava-se numa líquida recordação cardíaca
ocultos pólen pólvora fósforos
a má reputação dos dedos
paixão cartografada remota
toponímia de enganos
braço a braço crescia alto
o incêndio no interior do peito
deliberado ritual de lâminas e pele
a transparente certeza
da cicatriz

mas ardia de amor pela casa soturna
silêncio dando para o saguão luz muitíssimo
extinta por sobre a larga extensão destruída
morrer, principalmente de amor, é
uma compendiosa tarefa doméstica
dentro do coração antigo
                  serei breve

(in Contra a Manhã Burra)
Miguel Manso

Benefício de inventário



Aqui estou de novo
crente,
o mesmo cedro,
o coração continua a arder em lume brando,
tu és apenas uma memória longínqua de algodão em rama
a estancar as últimas feridas,
afastando-se guilhotinada pelas persianas.

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Aviso


Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.






antonio sáez delgadotradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3verão de 1998
palha de abrantes