quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Os dias passam assim...

Os dias passam assim,
como direi?
— delicados.

Não há projectos de viagens,
e tratado das grandes ideologias
abandonado a um canto;
os crimes perfeitos são outonais
e esta tarde é uma estação infinita;
a cama? «oh! a cama é larga».
lá fora a árvore é verde,
o universo expande-se;
do caderno à janela, penso neles,
nos amigos.
tarde duma única visão:
ter um terraço plantado de rosas.


António S. Ribeiro, Sião

Só ela ouvia música...

Só ela ouvia música; aliás, era ela que escolhia, mentalmente, as músicas que ouvia, ouvia secretamente essas músicas. E dançava com essas músicas; dançava com os olhos, com movimentos de cabeça, com os braços. Podia estar a ouvir pessoas e estar, ao mesmo tempo, a dançar essas músicas. Dançava; às vezes, por dentro de si mesma.


Armando Baptista-Bastos

Crianças na estrada rural



«Vivem lá umas pessoas! Imaginem, não dormem! »
«E porque não?»
«Porque não se cansam.»
«E porque não?»
«Porque são malucos.»
«Os malucos não se cansam?»
«Como é que os malucos se podiam cansar!»

Franz Kafka, in "Os Contos" assírio & alvim, 2004

Incidente de trânsito



Caía na manhã serena
uma chuva molha-tolos
e sobre o pequeno veículo azul
de pneus para o ar,
pelo asfalto iam germinando
sirenes e pirilampos
a assinalar o despiste,
à entrada do túnel do Grilo
um acidente de percurso
ao romper  da madrugada,
à espera da libertação
a  rapariga serena
mas encarcerada,
enquanto sobre nós
caía a chuva.

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


Ave haiku LXXVII



a ave atravessa as nuvens e a seta 
vai ao seu encontro, no esplendor do orvalho
entre a erva macia são agora uma natureza morta

Lisboa, 2 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Ave haiku XXLVI



Ali estava eu a ouvir o tamborilar da chuva
a ave debaixo de telha do velho pardieiro
sabia que quem voa à chuva molha-se.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Posto de gasolina



poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a
crina dum cavalo. vêm mortos de sede. julgo que se perderam
no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. neste em-
prego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do
mundo a acelerar-se pouco a pouco. quem sou eu, no entanto,
que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os
sonhos de quem passa?

- carlos de oliveira -