terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ave haiku LXXIII



Sento-me à beira do tanque
o pardal no outro canto sacia a sede
o gato sacode o rabo no muro estreito.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Hoje não visitei...


Hoje não visitei ainda a passarada
aguardam-me, a alpista, água mudada
não necessáriamente por esta ordem
mais uns minutos e ficam inquietos 
a bater-me com o bico nas costelas
flutuantes e nas paredes do peito.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Esta dor não passa quando adormeço



Esta dor não passa quando adormeço
chora ao pé de mim
irremediável

alguém nos toca no ombro e
damos por nós mais sozinhos

o meu lugar na morte
é junto à janela
logo atrás de ti


Mário Rui de Oliveira

A nêspera

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


Mário-Henrique Leiria, Contos do gin tonic

ASTRONOMY

 
The Wain upon the northern steep 
 Descends and lifts away. 
Oh I will sit me down and weep 
 For bones in Africa.



 For pay and medals, name and rank, 
 Things that he has not found, 
He hove the Cross to heaven and sank 
 The pole-star underground.



 And now he does not even see 
 Signs of the nadir roll 
At night over the ground where he 
 Is buried with the pole.


A. E. Housman

mostras-me o fim do mundo


Mostras-me o fim do mundo
o Inferno de Dante
onde o Diabo nos arde na sua fogueira
com os demónios todos juntos
mesmo assim quero ir contigo
vou contigo para o fim do mundo
para o fim da Terra
para o Céu ou o Inferno
vou contigo para a fogueira do Inferno
lá quero-me arder contigo
e ardemos os dois
ao mesmo tempo trespassados pela faca do amor.


António Gancho

Debaixo do colchão tenho guardado


Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.


António Franco Alexandre