Na parede por cima da cabeceira havia três objectos: um alfange de fancaria que um amigo me trouxera de Alcácer Quibir, a carabina 22 automática e uma foto de eu-muito-puto a correr direito ao mar por uma estrada abaixo. A foto tinha por baixo uma legenda:
U OMÃI QE DAVA PULUS
Nuno Bragança, SQUARE TOLSTOI
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
Mãe!...
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo
tão verdade!
Almada Negreiros
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo
tão verdade!
Almada Negreiros
Ave haiku LXXII
Um raio de sol
acendeu um pássaro de luz nas minhas mãos
à noite lançarei as suas cinzas ao mar.
Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Ave haiku LXXI
O mocho
vigia as grandezas e as misérias
deste tempo crepuscular.
Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Pequenos grandes detalhes
Houve uma altura da minha vida, antes de ti, em que o detalhe e a raridade
dos objectos faziam a diferença, era as coleções de selos de países, de que nunca ouvira falar e de conchas, que somente se podiam apanhar nos abismos mais inacessíveis e de penas de aves exóticas, entre as teias de aranha dos sótãos, onde viajava pela penumbra dos mundos.
Depois foste o vórtice de luz, a entrar por ali a dentro, foi quando eu me perdi na coleção dos felizes pormenores do teu rosto, das reentrâncias e interstícios fulgurantes do teu corpo, da leveza das tuas palavras aninhando-se no ouvido.
A minha coleção habitava agora em ti, foi crescendo em ti, que eras única e que só eu em ti poderia encontrar.
Até que te perdeste de mim e agora procuro-te nos tons sépias da minha velha coleção, no abismo dos búzios ecoando o teu nome, nas penas que deixaste na tua fuga inopinada.
As minhas mãos moldam agora os detalhes do vazio, os nós da madeira, o torneado da tua cadeira, a distância milimétrica do teu lado da cama, sobretudo a intensidade da ausência do teu aroma, ao entrares em casa, o inundar da tua veemência esbaforida.
Reconstruo o mundo à altura do acanhado sótão da minha vida, depois da tua ordem de despejo, eu vou sobreviver, o problema mais complicado é a coleção, já dizia um qualquer iluminado que a beleza da vida está nos detalhes.
Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Acrobacias
sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.
Ana Paula Inácio
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.
Ana Paula Inácio
Essa doente sensação
Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.
Nuno Júdice
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.
Nuno Júdice
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