segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ave haiku LXXII



Um raio de sol 
acendeu um pássaro de luz nas minhas mãos
à noite lançarei as suas cinzas ao mar.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LXXI



O mocho
vigia as grandezas e as misérias
deste tempo crepuscular.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Pequenos grandes detalhes


Houve uma altura da minha vida, antes de ti, em que o detalhe e a raridade 
dos objectos faziam a diferença, era as coleções de selos de países, de que nunca ouvira falar e de conchas, que somente se podiam apanhar nos abismos mais inacessíveis e de penas de aves exóticas, entre as teias de aranha dos sótãos, onde viajava pela penumbra dos mundos.
Depois foste o vórtice de luz, a entrar por ali a dentro, foi quando eu me perdi na coleção dos felizes pormenores do teu rosto, das reentrâncias e interstícios fulgurantes do teu corpo, da leveza das tuas palavras aninhando-se no ouvido.
A minha coleção habitava agora em ti, foi crescendo em ti, que eras única e que só eu em ti poderia encontrar. 
Até que te perdeste de mim e agora procuro-te nos tons sépias da minha velha coleção, no abismo dos búzios ecoando o teu nome, nas penas que deixaste na tua fuga inopinada.
As minhas mãos moldam agora os detalhes do vazio, os nós da madeira, o torneado da tua cadeira, a distância milimétrica do teu lado da cama, sobretudo a intensidade da ausência do teu aroma, ao entrares em casa, o inundar da tua veemência esbaforida.
Reconstruo o mundo à altura do acanhado sótão da minha vida, depois da tua ordem de despejo, eu vou sobreviver, o problema mais complicado é a coleção, já dizia um qualquer iluminado que a beleza da vida está nos detalhes.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Acrobacias


sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.


Ana Paula Inácio

Essa doente sensação

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice

Da recusa do abandono

Eu não tenho passado, trago tudo comigo. É uma questão de incompetência - construí uma casa de vidro sem aprender a porta, abandonei-me à minha sorte, e a janela que me mostras abrindo-se serve apenas para confirmar o que aqui se encerra. Por todos os cantos foram plantadas pela mesma mão as papoilas e as ervas daninhas e as vozes muitas disfarçadas pelos silêncios. O que aqui não se ouve ocupa hoje o espaço inteiro, despedaçado. E se o tempo parece ter esquecido este lugar, é porque há muito que nada esqueço. Não chegaste a tempo de perceber que nem sempre se confundiram as estações e as horas dos dias, que houve um tempo em que os nomes das coisas tinham nomes de coisas e não nomes de gente ausente. Mas tu que me olhas podes confirmar a lucidez do que digo quando digo que só a perda sempre nos acompanha.


Pedro Jordão, Golpe d'asa

é tudo o que me resta


Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti


Ana Luisa Amaral