segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Da recusa do abandono

Eu não tenho passado, trago tudo comigo. É uma questão de incompetência - construí uma casa de vidro sem aprender a porta, abandonei-me à minha sorte, e a janela que me mostras abrindo-se serve apenas para confirmar o que aqui se encerra. Por todos os cantos foram plantadas pela mesma mão as papoilas e as ervas daninhas e as vozes muitas disfarçadas pelos silêncios. O que aqui não se ouve ocupa hoje o espaço inteiro, despedaçado. E se o tempo parece ter esquecido este lugar, é porque há muito que nada esqueço. Não chegaste a tempo de perceber que nem sempre se confundiram as estações e as horas dos dias, que houve um tempo em que os nomes das coisas tinham nomes de coisas e não nomes de gente ausente. Mas tu que me olhas podes confirmar a lucidez do que digo quando digo que só a perda sempre nos acompanha.


Pedro Jordão, Golpe d'asa

é tudo o que me resta


Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti


Ana Luisa Amaral

Ave haiku LXX



Fui atrás do canto de um pássaro
entrei por uma ruela e "desemborquei" num beco 
a ave tinha "despassarido" e ficou apenas um canto.
 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013


Carlos Vieira

era uma vez


Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia
encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da
outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não
ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o
próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.


Ana Hatherly

Pode-se escrever


Pode-se escrever sem ortografia

Pode-se escrever sem sintaxe

Pode-se escrever sem português

Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua

Pode-se escrever sem saber escrever

Pode-se pegar numa caneta sem haver escrita

Pode-se pegar na escrita sem haver caneta

Pode-se pegar na caneta sem haver caneta

Pode-se escrever sem caneta

Pode-se sem caneta escrever caneta

Pode-se sem escrever escrever plume

Pode-se escrever sem escrever

Pode-se escrever sem sabermos nada

Pode-se escrever nada sem sabermos

Pode-se escrever sabermos sem nada

Pode-se escrever nada

Pode-se escrever com nada

Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever

Pedro Oom,


às quatro da manhã raramente


está aqui alguém, só de passagem.
eu, pelo contrário, gosto de sentar-me
porque o meio da madrugada vai bem
com estas pedras e estes sentimentos

mesmo que me recordes o resto
da noite, aqui perto, por ali,
entre os corpos organizados e
disponíveis, a língua e a conversa
decorada, essa memória
não chega. Nem tu

a meu lado sobrevives à
solidão deste lugar.


Pedro Santo Tirso

Podes ficar aqui?

Podes ficar aqui?

Não vás embora,
precisarei de mais alguns minutos,
horas, dias, semanas, meses, anos,

eternidades para te esquecer

Fernando Pinto do Amaral