domingo, 29 de dezembro de 2013

Ave haiku LXVII




Duas cacatuas 
discutem entre si o preço
que estão a pedir por elas.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LXVI



amo-te
entre a vida dos pássaros
e as asas do desejo.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

sempre amei por palavras muito mais


sempre amei por palavras muito mais
do que devia


são um perigo
as palavras


quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada


e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos


um perigo
as palavras


mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

dias melhores


A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.


Rosa Alice Branco

Ave haiku LXV



Por vezes, apanho um punhado de palavras
e sem cuidar da terra e da estação atiro-as 
eu sou um espanta pardais que fica por ali.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

mulher: vagar


O vagar da mulher é dissemelhante do vagar dos homens e das coisas. O vagar da mulher contrai cada pretérito à milésima, ocupando cada milímetro pela sexagésima parte do segundo mais breve. O vagar de qualquer mulher dilata-se em mil partes desiguais a um todo. A mulher não executa a presença desmembrada das coisas, sem antes as invocar como domicílio próprio. A mulher segura de frente os edifícios caiados na tijoleira das costas, suporta as urbes fixas no eixo dos seus pulsos, faísca pelas luminárias ausentes de centelhas já extintas. O vagar da mulher nunca descuida a largura do antecedente, sem antes se esvaziar na obsessão intermitente do perímetro do verbo mais presente. A mulher é, igualmente e inteiramente mais mulher, na suspensão variável dos homens e das coisas. Os seus ângulos flectem-se na equidade ímpar das esperas. As suas mãos inclinam-se no ponto equidistante do vazio. A mulher cumpre o tempo a tempo inteiro, sem suprimir a duração menor da unidade. O vagar de cada mulher é célere e voluntário, e em tudo se apressa à lentidão demorada de um vaso caído.


Alice Turvo, in A Sul de Nenhum Norte

Nesta curva tão terna...


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


Alexandre O'Neill