sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

estranhas dores


No entanto hei-de falar-vos delas um dia, se me lembrar, se puder, das minhas estranhas dores, em pormenor, distinguindo entre os diferentes géneros, para maior clareza, as do entendimento, as do coração ou afectivas, as da alma (mais bonitas não há) e finalmente as do corpo propriamente dito, primeiro as internas ou latentes, depois as da superfície, começando pelo cabelo e couro cabeludo e descendo metodicamente, sem pressas, até aos adorados pés, lugar dos calos, cãibras, frieiras, joanetes, unhas encravadas, pústulas, gangrena, pé boto, pé de pato, pé-de-galo, pé-de-cabra, pé chato, pé de atleta e outras bizarrias. E, aos que tiverem a gentileza de me ouvir, falarei também, na mesma ocasião, de acordo com um sistema inventado já não me lembro por quem, daqueles instantes em que, sem se estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada.


Samuel Beckett

Ave haiku LVI




O papagaio verde à varanda,
no poleiro, vendo a vida lá fora 
ficou de bico aberto, perdeu a fala.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LV



Deixava-me levar pela mão do tratador,
nesse tempo a poesia era as aves conhecerem meu nome 
e a impressão da cor, da textura e do odor das sementes.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LIV



Na câmara escura do imaginário sobrevive
um pato real que regressa da eternidade 
rompe o nevoeiro e sobrevoa o sapal.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LIII



Lembro-me como se fosse hoje, tinha cinco anos, 
a espreitar pelo buraco da fechadura do portão do zoo
a imagem da primeira avestruz curiosa e altiva.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Errância

 

Poema a poema
vai tentando encontrar o seu caminho.
Corre atrás das palavras
e desconfia das que lhe vêem comer à mão,
não quer crer que este não é o caminho.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Da precipitação do amor


O itinerário serpenteante
de permeio a doçura das bétulas
emoldura teu rosto molhado
fixas a tristeza ferrugenta do arado
impávido perante a nossa pressa 
e a incerteza das colheitas
adivinham-se a urgência dos gestos 
insinuava-se no horizonte rural
o fulgor dos teu peito intransigente
o fumo das chaminés desvanece
no esplendor dos teus ombros
despeste-te tão lentamente 
num tempo em que só acontece 
a palavra espontânea de desejo 
amordaçada e o olhar helicoidal
por cima do cinismo dos homens
e a inveja dos deuses desafiando
amavamo-nos ao ritmo da chuva 
inclemente e torrencial.

Lisboa, 26 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira


What The Rain Brought by Mag3llan