domingo, 30 de junho de 2013

Nómada VI


Nómada
que carrega todos os vales e estuários e desertos
em sobrevoo
após alcançar o cume das montanhas
oiço-o praguejar
pode-se ouvir à sombra da história
o coaxar das rãs e o besouro dos insetos
migalhas contadas entre pássaros e árvores
e pressinto o último suspiro
de uma estrela cadente
a espreguiçar-se
nas bermas da sua memória.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                      “Le Nomade” de Michelle Chiecchio

sábado, 29 de junho de 2013

Nómada V


Nómada
que nunca parte
e que nunca fica
sendo de todas as viagens
não é de nenhum rumo
nem de lugar nenhum
assume violentamente
a liberdade de pertencer ao seu mundo
ou de não pedir licença de entrar
pelo coração a dentro de qualquer um
segue o perfume da rosa dos ventos.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira


                                   Obra de Jo Enaje


Nómada IV



Nómada
que se sentou
no largo 
dos que por ali vivem
e conta uma história
para onde vão partir
aqueles que por ali ficam.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



Foto de Jim Denevan

Nómada III


Nómada
acende a fogueira
e a máscara do seu rosto
nas suas rugas
pode-se percorrer os percursos
de uma alegria solar
o inacessível silêncio das lágrimas
que nos libertam
o primeiro rumor do frio da madrugada
nos lábios gretados
e irradiando no cantos dos seus olhos
vincos e linhas de fuga
de momentos surpreendentes
e outros de difícil esquecimento
apenas a fogueira
afasta do nómada
os predadores sem máscara
confinam-no
a uma liberdade sitiada.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                “Regarde Vieux” de Marie Laure Piffeteau

Nómada II



Nómada
bebe a lua
com gelo
que tinha adormecido
sob um lençol de água límpida
dentro de si
faz emergir a mais luminosa solidão
bebe pelo gargalo o vinho
que ainda resta
e o crepúsculo de sol ferido
por detrás do verde embaciado
da garrafa
mantém-se de pé
contra toda a ferocidade da sua lucidez
a pão e água
embriagado de vida.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                             Pintura de Mahi Bine Bine

Nómada



I

Nómada
indocumentado
de barba por fazer
não recomendável
com o IRS por fazer
nunca fez qualquer “check-up”
resume-se a um número estatístico irrelevante
para quem o quer encontrar ele anda por aí
verdade que o acompanha
há algum tempo aquela rouquidão
uma voz cavernosa
e que anda ao contrário dos ponteiros do relógio
para fintar o tempo
para não chegar atrasado ao encontro
que terá mais tarde ou mais cedo
com a morte
e então prestar contas
com juros à taxa Euribor da altura
de quanto lhe custou a liberdade
sem abrigo
de não tratar de toda a “papelada”
da morte adiada.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                           Pintura de Jean-Benoît Culot

terça-feira, 25 de junho de 2013

o rouxinol e o rio

o rouxinol não para de cantar
o rio não para de correr

afogou-se o rouxinol
vai devagar agora o rio
tropeçando no corpo
da ave
numa memória
sem canto

Lisboa, 24 de Junho de 2013

Carlos Vieira