sexta-feira, 20 de abril de 2012
Náufragos
hoje faz cem anos
do naufrágio
neste dia de cobalto
da esperança
que mergulha de novo em mim
também a chuva cai
“molha tolos”
e da janela da Queens University
observo os estudantes inteligentes e verticais
à mercê da meteorologia adversa
aqui em Belfast
ouvem-se submersos na neblina do tempo
os gritos dos náufragos
e nos telefones que tocam
aqui deste lado
ouve-se o silêncio do fundo do mar
e os estudantes afundados em exames
em questões
em projectos
mais mortos que vivos
e os desesperados deste Titanic europeu
ouço-os porque se entranham até aos ossos
num murmúrio
de chuva miudinha
dos corpos ausentes
abrem-se enormes brechas
no duplo casco da democracia moderna
e fico gelado até ao espanto
fica deserto o navio solidário
especado no nevoeiro
os estudantes lá vão
à bolina do conhecimento
esse poço da morte
cem anos depois
os sinos repicam esta profunda pobreza
em que mergulhados uns e outros à deriva
mais injustos por isso mais pobres
e vice-versa
os sonhos vão ficando ensopados
gaivotas de asas pesadas
nos portos onde há cruzeiros
fundeados
vendem-se sonhos
de barcos de amor
e fortalezas de fantasmas
cansados muito cansados da civilização
volta a chover em Belfast
cem anos depois
daqui avisto
os enormes exército dos deserdados
dão meia volta e avançam na lama
a verdade vem sempre ao de cima
a guerra parece coisa séria
discute-se nos gabinetes
disseca-se nos laboratórios
e pronuncia-se respeitosamente
nos mais destacado centros de decisão
nos cemitérios
a verdade vem sempre ao de cima
cem anos depois
assisto a este seminário onde se discute
as vantagens que existem
do leite materno
e as mães que não tem leite para os filhos
e os filhos que choram à fome
aprecio as explicações simples
e os comentários mais óbvios
houve uma distracção na distribuição
lapsos sempre vão existir sempre
a questão dos danos colaterais
e de não haver guarda chuvas
a crença obstinada do reequilíbrio do mercado
dos filhos da fome
está em crise
nos períodos de boas abertas
ou de fraca precipitação
os estudantes mais atrasados correm
porque aqui neste estabelecimento
pugnamos pelos princípios
e punimos com rigor os atrasos
à cem anos
morreram afogados muitas pessoas de Belfast
que vendiam saúde
agora que morrem os que estão doentes
e os a quem tratam da saúde
vislumbro a evidência dos moribundos
desfocada no vidro
o suave milagre soprado da vida
onde a chuva escorre
lágrimas inglórias
de chuva
não exista nada que seja mais dramático
que um filho doente
de ver a febre que teima em não descer dos 40º
e nós a assistirmos subjugados
à cem anos que chove na escola
tudo se aprende e tudo se apaga
mesmo nos momentos de nuvens mais carregadas
os professores erram por vezes
sendo fontes inextinguíveis de conhecimento
mesmo em dias de chuva torrencial
em que mal se ouviam as suas palavras
à cem anos
ouço a rádio que acordava Belfast
para um pesadelo
neste tempo de desempregados
onde chove copiosamente
e também se pode ouvir o vento gelado de tanta ausência
Belfast, 17 de Abril de 2012
Carlos Vieira
“It wasn’t an
iceberg that shank the Titanic” Cody Rapol
sábado, 14 de abril de 2012
Andrómeda
Telúrica
vives séculos ajoelhada na tarde rural de um postigo
depois pode ser o rapto de um abraço, a mordaça de um lenço
o pânico do rosto inquieto onde o amor lê sinais esperança
e não vê sinais de perigo
No lago
surpreendida na tempestade navegas no barco amigo
soletras o relâmpagos e as trevas e na eternidade feroz
das vagas até se apagar o fogo do teu corpo deslumbrante
e sem abrigo
Sacro
é teu corpo já manso sobre o rumor do piano e do trigo
e os caracóis dos teus cabelos, vens descalça pelo sono
solto
dos teus olhos que irradiam o brilho da noite
solitário epílogo
Ouve a minha trova
onde crepita o sangue de um canto antigo
a arfar no vulto tangível da mulher nova
ouve o coração despedaçado que sangra a ferida
rosa de um figo
Lisboa, 14 de Abril de 2012
Carlos Vieira
“Perseus e Andrómeda”
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)